Transcrição do episódio 4 - É verdade esse bilhete?

CONVIDADOS: eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis, eles tagarelarão. (solicitar para gravarem e encaminhar para os hosts)

ANA KARLA: Hey, everybody! Este é o quarto episódio do LínguasCast, o seu podcast sobre linguagens, identidades e otras cositas más. O título do episódio de hoje é: É verdade esse bilhete? Let’s que vámonos!

LETÍCIA: Olá, linguarudos, linguarudas e linguarudes! Sejam bienvenidos ao quarto episódio do LinguasCast. Eu sou a Letícia.

DAVI: E eu sou o Davi. Hello my tongue twisters, welcome to our podcast.

LETÍCIA: – O tema do episódio de hoje tá na ponta da língua e são os estereótipos e as crenças que são associados às línguas, ou seja, as características imaginadas que são vinculadas a alguns idiomas e passam a ser vistos como verdades sobre eles. No geral, são fortemente estigmatizados e representam ideologias e formas de ver o outro e sua língua.

DAVI: – E pra falar sobre ele nós convidamos Suzana Vinicia Mancilla Barreda, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus do Pantanal e membro do Grupo de Pesquisa Linguagens e Descolonialidades - GPLeD (UFMT/CNPq); e Vitor Pluceno Behnck, acadêmico do curso de Letras - Inglês, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bolsista do Programa de Educação Tutorial - Letras (PET-Letras) da mesma universidade.

LETÍCIA: – Gente, nós agradecemos imensamente o fato de vocês terem aceito o convite da equipe do LínguasCast e … sejam bem-vindos!

DAVI: – Bem-vindos!

VICTOR: – Muito obrigado, pessoal!

PROFESSORA SUZANA: – Muito obrigada também, Agradeço pelo convite!

PROFESSORA SUZANA: E estou aqui pronta para as perguntas e respostas, um diálogo entre todos nós, né?

LETÍCIA: – Vamos começar então, a gente começa com essa pergunta que é pros nossos dois convidados, né? Em que momento vocês notaram que as línguas também são alvo de construção de falsas verdades? Foi como usuários da língua ou só como um especialista nela? Quando vocês começaram a estudar as línguas que vocês começaram a perceber isso?

LETÍCIA: –  A gente pode começar acho pelo Vitor, pode ser Vitor?

VITOR: – Uhum, pode sim. É, então eh na verdade comigo foi um processo um pouco mais tardio essa essa percepção dessas falsas verdades sobre sobre as línguas. Quando eu comecei a estudar a língua inglesa eu não tinha muita noção disso até porque eu comecei a estudar né quando eu era uma criança ainda, mas quando eu entrei na faculdade eu comecei a me dar conta sobre algumas questões ideológicas implicadas no aprender e principalmente no ensinar alguma língua né. Então algumas coisas que eu percebi nesse processo foi que algumas línguas ocidentais modernas, como o inglês, o espanhol, o português e o francês elas têm uma conexão ainda muito forte com os países que colonizaram o mundo com esses idiomas, então, por exemplo, quando a gente pensa, no inglês, eu penso que que há dois principais caminhos, pensando numa questão de mídia assim mesmo, que que a nossa mente pode ir. Senão eu ir pra esses dois caminhos que é ou a gente vai pensar numas bandeirinhas do Reino Unido, do Big Bang, umas coisas assim, né? Ou a gente vai pensar numas bandeirinhas dos Estados Unidos, né? Na Estátua da Liberdade. Então quando a gente pensa em questões mais midiáticas, questões de cultura mesmo, né? Quando a gente vai pensar numa cultura anglófona, geralmente a nossa mente está condicionada para ir pra algum desses dois lugares, isso foi algo que eu me dei conta só quando eu entrei no curso de graduação, né? E uma coisa que eu que eu acabei estudando no decorrer do meu curso de graduação, foi essas falsas verdades ela vem muito desse passado colonialista e principalmente desse imperialismo linguístico, se a gente pode chamar assim, existente em muitos contextos de ensino de línguas, então quando a gente pensa no inglês a gente pensa ou na na variante do inglês britânico ou na variante do inglês norte-americano, quando na verdade o que existem são ingleses com muitas variedades, de muitos países que também tem essa língua como a língua oficial ou como língua materna como a África do Sul, a Jamaica, a Índia,  Trindade Tobago. São países que muitas vezes não são considerados nessas discussões de variantes, e a gente também, não precisa ir pra outro idioma, quando a gente está pensando nessas questões de imperialismo na própria língua, a gente tem países da da comunidade de língua portuguesa que muitos cidadãos brasileiros desconhecem as variantes, como por exemplo o caso do Timor Leste, o Cabo Verde dentre outros países.

LETÍCIA: – Urum!

DAVI: – Uhum!

LETÍCIA: – Professora, você?

PROFESSORA SUZANA:Olha, a minha experiência com a sobre a questão linguística vem desde, desde, o berço, vamos dizer eu sou a paulistana mais boliviana ou a boliviana mais boliviana, porque eu sou filha de bolivianos.

TODOS: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: – Então não permaneceu em São Paulo, ela fez o trânsito entre a Bolívia e São Paulo várias vezes. E todas essas vezes foram momentos de reflexão sobre a língua mas não uma reflexão assim sistematizada, organizada, mas de sensações, de afetos, é as línguas que me atravessam, né? O português, o castelhano, assim não necessariamente nessa ordem, meu pai  falante foi de Ketcho desde o berço também e ele aprendeu castelhano na escola, o repertório linguístico atravessa minha vida ao longo de todos estes anos. Então,  a maturidade vamos dizer me fez é claro depois posteriormente na já no curso de de graduação a começar a pensar nisso, mas, o que de fato me fez muito pensar muito mais pensar assim já de uma forma mais assim vamos dizer como é estudiosa foi aqui quando eu estive, que estou falando aqui da fronteira com a Bolívia, estou em Corumbá, aqui na fronteira, foi o lugar de maiores reflexão que eu tive esse respeito da reflexão realmente mais sérias. Porque a língua vai nos formando e faz parte da nossa identidade, só que como falante eu não tinha essa reflexão, eu fui ter depois, e toda essas questões colonialidade dessa supremacia que existe no imperialismo, por exemplo,nessa fronteira aparece muito mais o lado brasileiro, do que o imperialismo que a gente fala do inglês, aqui por exemplo, há uma questão imperialista local sobre o castelhano, enfim, sobre isso podemos conversar mais adiante, mas foi mais ou menos a experiência falante que me fez desde sempre sentir as línguas atravessando minha vida.

DAVI: – Que legal!

DAVI: – Para nossa próxima pergunta, eu sei que o Vítor já explanou um pouco sobre isso. A gente queria saber se vocês acham que existe um ambiente mais propício para que se criem, né? Esses estereótipos linguísticos. Mas eu quero mudar um pouco essa pergunta, já que o Vitor falou das mídias, né? E pensar em direcionar primeiramente para o Victor, Victor, você acha que as mídias são o ambiente mais propício para para a criação dos estereótipos? Ou você acha que esses estereótipos vem de antes? É de do cinema, de línguas distintas, tipo região geográfica de convivência, como você. Você entende isso?

VITOR: – É muito interessante essa pergunta Davi, eu acho que assim essa é uma questão muito complicada, não é? Então precisaria de estudos para e de pesquisas para conseguir construir uma resposta sólida assim. Mas partindo de uma opinião mais pessoal, mesmo assim, do que eu estudei, do que eu compreendo desse processo, eu acredito que a cultura, mais especificamente, os meios de produção de cultura no sentido, mesmo assim, de indústria cultural. Eu acho que eles têm uma agência muito forte assim nessas percepções que a gente tem sobre língua, e o que é uma língua de onde vem, para onde vai, para que serve, então, pensando na minha área, não é que é o ensino de língua inglesa, tem até um meme na internet que quando é o algum filme em Hollywood, as cores são normais e quando o filme é no em algum país do sul global ou a cor é meio alaranjada, né? Sei lá, ou aparece uns animais silvestres, uma coisa meio assim sabe que não diz muito com a realidade, então eu acho que vem um pouco daí também essas perspectivas, que é que a gente tem assim. E nesses estereótipos eles são inseridos muito profundamente na nossa cultura, e principalmente no Brasil, né? Que é um país que, apesar de estar num contexto, é de uma América que fala majoritariamente castelhano, ainda é extremamente influenciado, é pela cultura estadunidense assim, né? Como o mundo todo, né? Que a gente vê esse processo acontecendo, então eu vejo assim, na cultura, na produção da cultura, na indústria cultural, eu vejo uma ferramenta assim muito forte, de apagamento da da cultura alheia e também de de realmente assim inculcar, né? É o que que é um inglês correto, não é o que que é uma língua correta, o que que é um jeito de viver, de consumir, de produzir, de trabalhar. Correto, né? Então eu acho que isso está muito relacionado assim, então a minha minha minha reflexão vai mais pra esse lado de pensar na cultura como um elemento mobilizador nessas preconcepções nessas, nessas ideias que a gente tem sobre estereótipos de língua.

DAVI:  – Uhum, muito bom!

DAVI: – Professora Suzana, é como que a senhora vê isso? Assim a Senhora acha que existem esses ambientes propícios? Para a criação desses estereótipos. E se sim, quais seriam?

PROFESSORA SUZANA: - Então ouvindo o Vítor, eu vou primeiro falar uma coisa que ele me fez lembrar da tua resposta, viu? Victor? Esse castelhano é influenciado pelo inglês e essas influências a gente, inevitavelmente, nós estamos sujeitas a elas, né? Mas se uma coisa assim muito marcante que eu percebi saindo da Bolívia, porque como eu disse, eu transitei muitas vezes entre a Bolívia e o Brasil, numa dessas, eu me dei conta, eu me dei conta, na verdade, dando aula de castelhano. A gente cantava quando me perguntavam, meus alunos, dando aula, "professora, como é que se faz, como é que se canta castelhano? Em castelhano, em espanhol, é com plenos. É parabéns a você. Aí eu falei, ``happy birthday To You”

Todos: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: – Foi assim, uma coisa espontânea, sabe por quê? Porque incrivelmente é na Bolívia, é em vários ambientes, eu posso dizer ainda se canta, é uma parte em castelhano com cumpleaños felizes, e depois happy birthday.

VITOR: – Nossa, que interessante fazer isso. [risos]

PROFESSORA SUZANA: – É, e isso eu fui perceber depois, assim com a fora de lá, então, natural essas coisas que naturalizam de uma forma que você não percebe que está, que isso está acontecendo, né? Agora, sobre isso, isso me lembrou a fala do Victor, falando sobre o castelhano é influenciado pelo inglês e não somente nas misturas, né? Porque a gente fala assim, tem, por exemplo, nos Estados Unidos, a mistura do spanish e realmente fatores culturais que estão influenciando no cotidiano. Agora, uma coisa assim, que eu acho interessante pensar da pergunta de você sobre as mídias e tal, eu acho que a gente às vezes fala muito de estereótipos linguísticos na mídia, né? O preconceito na mídia, mas, por exemplo, na experiência que eu tenho aqui pela frente, na Fronteira, eu vou falar muito deste lugar que estou falando, né? Vocês entendem? Minha fala é deste lugar, da fronteira, então eu percebo que esses preconceitos eles estão, eles são imaginários que são propagados socialmente e muito, muito pelas famílias, preconceito realmente é no sentido que a palavra traz conceitos gerados anteriormente, né? E que são herdados, então assim a gente vê que não é só o exterior que vai propagar esse tipo de olhares, que são padronizados e a permanência dessas ideias padronizadas, vamos dizer, mas também ela subjaz toda a nossa sociedade. Então isso que nos faz refletir muito sobre e está entranhado o rum é mais ou menos isso que eu penso sobre essa pergunta.

LETÍCIA: –Então seria mais uma questão de que está subjacente à sociedade mesmo, então o espaço é que vai fomentar ou não, né? Bom… 

LETÍCIA: – A gente pensa e também na questão do ensino de línguas, porque você trabalha com o ensino de línguas e quando você trabalha com ensino de línguas, às vezes a gente acaba trazendo aspectos culturais desses espaços geográficos, em que as línguas circulam, então, elementos que a gente pode pode entender como representativos de tipo pratos típicos ofertas populares que a gente sempre acaba trazendo para as aulas, né? Em algum momento essa representação, essa ideia do que é típico pode vir a se tornar o estereótipo. O que vocês acham?

PROFESSORA SUZANA: – Olha, é, eu acho que sim. É acreditar assim? Olha, são esses produtos culturais, né? A gente tende a falar assim, por exemplo, é legítimo, né? Não sei vocês  conhecem a saltenha

TODOS: – sim!!

PROFESSORA SUZANA: – É muito engraçado esse esse a saltenha, porque você conhecia saltenha com o produto boliviano, né? Mas só tenha, significa que é procedente de Salta, Argentina, então já por aí você começa a pensar, ué, mas é boliviana, mas o nome provém de Salta argentino, ou seja, não é há uma, é, há uma. Como é que eu vou dizer uma, há umas misturas que podem tender a uma folclorização , é isso, isso, estudei no meu doutorado. É, eu li um autor muito legal que eu recomendo e chama Patrício Guerrero Arias, e ele fala sobre essa, sobre essa folclorização, que ele fala que essas pressões culturais podem perder esse sentido simbólico que elas têm, né? E em lugar de ser representações e tornar-se apenas apresentações já não como uma representação, mas como uma apresentação, né? E que pode ter sabor, cor, enfim, mas que perdem o significado. E eu me lembrei de um fato, a gente desculpa, eu sou meio falante demais. No mês de junho, tem uma festa que se chama la fiesta ou a Festa do Sol, ela é realizada lá no Cusco tradicionalmente, né? É 24 de junho, solstício de inverno, então essa festividade, por exemplo, ele é todo, é simbólica, mas como ela está agora sendo? Como ela é trabalhada agora, ela é mais uma apresentação que uma representação, né? Então, é nesse sentido que eu falo que sim, os aspectos culturais podem se tornar realmente, podem ser folclorizados, e deixar de ser e tornar-se estereótipos, enfim, aí vai caminhando para aquele que é pra esse esse caminho que a gente sabe, né, que vai chegar numa num esvaziamento de sentido.

LETÍCIA: – Vítor e você?

VITOR: – Nossa, eu achei muito interessante isso que a Susana, pontuou porque não é, são realidades assim que muitas vezes a gente não tem contato, não é? Então é muito interessante Susana. Mas sobre a pergunta na minha vivência assim é, eu acho que é realmente essa  ideia do típico, né? É se a gente pensar né, numa questão de oposição, a ideia do típico também delimita o que é atípico, né? Ou que não é típico, então é a questão do estereótipo, é muito complicado é quando a gente pensa, não é num contexto linguístico, é sem pensar nas variações que existem, não é nas possibilidades que existem nesses contextos, né? Eu até tinha buscado um dado aqui para outra resposta, mas quando a gente pensa nos falantes da língua inglesa, né? É aproximadamente, né? Números aproximados assim é tem 378000000 de falantes nativos de inglês, enquanto 743000000 desses falantes são não nativos, então, se a gente tenta colocar um estereótipo sobre o que é falar o inglês, a gente vai é, não vai estar representando a realidade, porque na verdade, é uma pluralidade muito grande, né? Então, quando a gente pensa no estereótipo de uma língua, a gente tem que pensar que essa língua também é, não somente uma língua materna, mas também uma língua estrangeira, uma língua adicional, né? Então eu acho que quando se pensa no contexto do ensino de línguas, também considerar que esse é um ambiente extremamente plural e diverso, e que se a gente pretende preparar estudantes, e falantes que vão ser multiculturais, a gente também tem que preparar eles para lidar com situações em diferentes contextos de fala, né? Então eu acho que é a ideia do típico, né? A gente tem que pensar o que que esse típico? Porque quando a gente define o típico, a gente também está delimitando o que é atípico, né?

DAVI: – Nossa, muito interessante!

DAVI:  – Ainda nessa ideia de ensino de línguas, né, que a Le fez a contextualização. A gente queria saber é como vocês entendem assim, ou vocês acham que os estereótipos é que as pessoas possam ter sobre uma determinada língua? Elas atrapalham a aprendizagem dessa mesma língua adicional?

VITOR: - É, bem, eu acho que depende, assim, depende de qual estereótipo, acho que estereótipos no geral não são bons né. Mas, nessa pergunta especificamente eu acho que depende do que a gente tá falando, mas quando a gente tem a ideia de que algumas línguas são mais difíceis do que outras. Por exemplo, vamos pegar de exemplo línguas do ramo germânico, por exemplo, então o alemão, a gente tem a ideia de que elas são mais difíceis do que línguas que estão mais próximas, só que na verdade isso é um mito, né, não é possível dizer que uma língua é mais difícil do que a outra, né.

DAVI: - Urum!

VITOR: - a gente pode colocar que talvez uma língua seja de um ramo linguístico mais distante, mas não necessariamente que ela seja mais difícil, isso não tem como ser dito. Mas, então, eu acho que talvez nesse sentido, esse tipo de pré-concepção de pré-entendimento cria também uma pré barreira né.

DAVI: - Urum!

VITOR: - um filtro afetivo ali, que pode inibir uma aquisição muitas vezes e que, de fato, pode não corresponder com que o estudante vai encontrar. Então eu acho que esse combate dessas crenças, assim, de que certos temas linguísticos são ou impossíveis ou mais difíceis que outros eu acho que é importante para que a gente não crie nenhuma indisposição prévia a aprendizagem, sabe, entende?

DAVI: - Sim

VITOR: - É, mas eu acho que também a questão cultural, né, isso não significa que a questão cultural tem que estar aplicada no ensino de línguas, ela deve. Mas, eu acho que é muito isso, o jeito como a gente faz, como a gente insere questões culturais e as concepções que a gente tem, né, então eu acho que a resposta seria: depende. [risos]

DAVI: - [risos]

LETÍCIA: - [risos]. E você, professora, o que acha?

PROFESSORA SUZANA: - É, eu concordo com o Vitor, eu acho que sobre essa questão de aprendizagem de línguas, os estereótipos, por exemplo, eu vou falar sempre a partir do espanhol, né?

LETÍCIA: - Urum!

PROFESSORA SUZANA: - o castelhano. Então, justamente essa, até nomenclatura, por exemplo, pode influenciar, é eu como professora de espanhol ou castelhano, se eu me apresento para dar uma aula de castelhano, as pessoas vão perguntar, mas por quê castelhano? eu quero aprender espanhol

LETÍCIA: - Urum

PROFESSORA SUZANA: - Então, [risos], castelhano como sendo uma língua menor, ou uma sub-língua ou uma língua, não sei. É, isso aí acompanhou toda minha trajetória de professora de espanhol ou castelhano, tanto que é interessante, porque eu começo minhas aulas falando sobre isso. Eu pergunto para os alunos "o que viemos estudar?", "Que vamos a estudar"? Espanhol ou castelhano, e aí eles começam a falar "não, eu quero estudar espanhol" "ah, os dois", "eu quero falar...". Aí eu começo a falar e eu só consigo que, isso eu falo na maior parte das vezes, né, eu não vou falar 100%, mas eu consigo muito que os alunos aceitem a nomenclatura castelhano quando eu falo para eles que a constituição espanhola, reza, na constituição espanhola, que a língua espanhola é o castelhano e eu mostro isso, olha a constituição espanhola em 1978, o que ela fala. Então, aí eles falam "uh, mas ela não fala do espanhol?" Eu falo: não [risos].

DAVI: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: - fala castelhano, então, a partir daí a gente começa a conversar sobre isso e é uma quebra, sabe, isso é uma quebra desse estereótipo que classifica o castelhano como uma sublingua.

DAVI: - Urum!

PROFESSORA SUZANA: - porque, na verdade, quando a gente procura no dicionário, né, a gente encontra no dicionário da real academia, por exemplo, a gente encontra que espanholo é sinônimo de castelhano, só que, preferencialmente, deve-se falar espanhol, falam assim, né, no dicionário da real academia espanhola, que deve se falar, preferencialmente, espanhol, porque castelhano pode-se confundir com uma língua romance. Mas, vejam bem, na constituição do Estado plurinacional boliviano, por exemplo, está assim, são línguas oficiais as 36 línguas nacionais e o castelhano, não falam do espanhol e outros e eu andei averiguando em outras constituições dos estados da região latino-americanos que, ou não falam exatamente a língua ou denominam espanhol e algumas denominam castelhano, então, assim, é uma coisa que está muito dividida, mas não totalmente. Então, a partir daí que eu penso que os estereótipos podem atrapalhar sim, por exemplo, neste caso que eu coloquei especificamente da minha área aqui do ensino de espanhol.

LETÍCIA: - Urum

DAVI: - É, eu fiquei, eu fiquei muito curioso para saber aqui, óh, o Vitor estava falando aqui sobre esse elemento cultural da língua, a professora Suzana deu alguns exemplos, e eu queria que vocês compartilhassem, assim, um pouco, se possível, explicassem como que vocês trabalham essa questão cultural na língua, né, eu sei que os dois tem, já dão aula de línguas, o Vitor de inglês, a professora Suzana de espanhol, é, então como que essa questão cultural se faz presente nas aulas de vocês?

VITOR: - É, bem, então, quando eu penso como trazer questões culturais para a aula, assim, eu acho que é importante a gente sair um pouco da compreensão do mundo anglófono como uma coisa do Norte global.

DAVI: - Urum.

VÍTOR: - Então, eu acho que existem muitos recursos hoje em dia para a gente pensar em histórias e perspectivas para serem trazidas para dentro da sala de aula, que fogem desse estereótipo, justamente, de que o inglês é uma língua necessariamente do Norte, né, sendo que, hoje em dia, não é mais o que acontece. Então, na minha vivência, assim, enquanto professor, eu tento trazer narrativas que que fujam um pouco desse local, não que elas não estejam presentes, né, elas estão, porque são duas populações de fala muito grandes, mas, por exemplo, existem muitos autores de outras partes do mundo que são extremamente qualificados e possuem escritas e relatos muito bons, por exemplo, a Chimamanda Ngozi Adichie, né, então

DAVI: - eu pensei nela agora mesmo.

DAVI E VITOR: - [risos]

VITOR: - É, exatamente. Então, tem uma palestra dela, um ted talk que é The Power of single story,

LETÍCIA: - Sim, muito bom.

DAVI: - Urum!

VITOR: - que é O perigo de uma história única, então, são, por exemplo, são materiais que podem ser trazidos para um índice né, para uma sala de aula, que podem gerar uma discussão e que são materiais que fogem do estereótipo do que é falar de uma língua inglesa, né, fogem daqueles contos de ensino médio americano, sabe?

DAVI: - Urum

VITOR: - Que fogem dessa perspectiva que a gente pensa, assim, quando a gente pensa em produtos culturais. Então eu acho que para preparar uma aula que seja multicultural, a gente tem que considerar que cultura vem de vários cantos do mundo, então se a gente for pensar em fazer uma festa com pratos típicos, etc, pensar que existem outros países que falam inglês e que também tem uma culinária, né?

DAVI: - Urum

VITOR: - E que são um contexto de línguas, então acho que ter essa concepção é muito importante, assim, de pensar que a língua inglesa não é algo restrito a dois países ou a uma parte do mundo, mas que é uma coisa que está transitando por aí, assim como outras línguas estão também, cada uma com seu contexto muito próprio, mas pensar num mundo como um lugar multicultural, plural, que com diferentes nacionalidades estão ali dialogando e pensar se a gente está se atendo só a cultura que vem do Norte ou se a gente também está pensando que nós somos seres que produzimos cultura, né?

DAVI: - Urum

VITOR: - Que, que ...

LETÍCIA: - Urum

VITOR: - Né, enfim, é isso [risos].

LETÍCIA: - E você professora?

PROFESSORA SUZANA: - Então, gente

LETÍCIA: - Como trata?

PROFESSORA SUZANA: - Eu estou aqui viajando a mil aqui ouvindo as respostas né

TODOS: - [risos]

PPROFESSORA SUZANA: - A resposta do Vitor também me faz pensar muitas coisas porque, é o seguinte, língua e culturas, talvez seria, ou não sei, línguas e culturas

DAVI: - Urum

PROFESSORA SUZANA: - Querendo representar uma diversidade que está tão, assim, expressa no nosso cotidiano, né? Outro dia eu estava falando com os alunos, com alunos de um colégio, né, aí eu fui falar assim: Oh eu quero que vocês me respondam, ola, que tal? Aí eles falavam "Ola", aí eu falava: oi tudo bem?, Aí eles falavam " tudo bem", aí eu falava: ``How are you, aí eles falavam "Fine". Então eu falei para eles assim: olha, só nesse nosso breve diálogo vocês já viram que essa diversidade linguística faz parte de vocês. O inglês, ele é catalogado como uma língua imperialista, etc, etc e por todos os motivos que a gente sabe, está presente no nosso contexto, então nós não podemos dizer que ele não faz parte da nossa vida, ele faz parte da nossa vida.  Então, assim, isso, é importante que as pessoas percebam o tanto que nós estamos mergulhados no mundo plurilinguista, então, só que a gente às vezes fica assim meio esquecido disso, porque na verdade são vários sentidos, não é só a fala, né, por exemplo, você ouve uma canção em inglês e você reconhece que é inglês, você ouve o português, você reconhece o português, se é o espanhol, você reconhece o espanhol, poxa,

DAVI: - Urum

PROFESSORA SUZANA: - Nós somos plurifalantes

LETÍCIA: - Urum

PROFESSORA SUZANA: - e compartilhamos certas aproximações dessas línguas, agora que grau de aproximação, isso já é outra história, então eu acho que cultura, ela necessariamente compõe uma língua e principalmente uma cultura que esteja assim, que seja plural, né? Porque se você pensar bem, a gente está falando aqui de línguas outras, línguas, assim, por exemplo, no caso, português espanhol, línguas de colonização, mas e as línguas originárias que estão por aí também? de alguma forma, nos nossos imaginários, nos nossos, nos nossos símbolos e signos, enfim.

LETÍCIA: - Urum. Professora, Elton Filaneto perguntou no Instagram que a gente sempre abre uma caixinha de perguntas, que antecede ao episódio, ele perguntou como combater os estereótipos em aulas de línguas adicionais, esses estereótipos que já vem, assim, acho que vocês meio que já foram por aí assim, né. E aí, eu vou emendar uma pergunta que era uma coisa que a gente tinha pensado também, a equipe do línguascast  tinha-se feito essa pergunta, e acho que ela casa com a pergunta do professor Elton, se vocês acham que a gente pode combater fora do ensino de línguas, também, esses estereótipos, né, então seria isso, como combater na aula de línguas e se a gente pode combater fora da aula de línguas também ?

PROFESSORA SUZANA: - nas aulas de língua, eu acho que de um modo geral a gente tem oportunidade de falar, assim, de vários temas relacionados a constituição social, individual e identitária da pessoa, né? Então, nas aulas de línguas, olha, de língua portuguesa, de língua espanhola, de todas formas, porque você vai falar o que que você gosta, o que que você conhece, né. Então, o que que você gostou daquele lugar ou daquele texto, sei lá, você sempre vai estar, é, você vai trazer muito da pessoa, do pessoal para promover esse diálogo nas aulas, nós sempre temos oportunidade de falar, já que temos oportunidade de tratar esses temas mais subjetivos, é uma oportunidade, obviamente, também de conversar sobre esses estereótipos, né, e o que que esses estereótipos podem gerar? Esses preconceitos que podem ser gerados a partir de uma ideia estereotipada, de uma ideia padronizada, então a única coisa que eu não sei, a pergunta que me comove um pouco é essa questão de combater, não é propriamente um combate, mas um grau de reflexão, alcançar um grau de um trabalho consciente, comprometido, de pensar nessas estruturas, mas não num sentido de combatê, me parece que quando a gente tem que ganhar e nem sempre isso acontece porque, como eu já disse, esses estereótipos são estruturais, então muitas vezes eles estão enraizados estruturalmente na nossa sociedade, então se a gente entra pra querer combater, muitas vezes nós vamos perder, então eu acho que é outra forma de abordar isso e não assim pelo combate ou pela luta, né? Mas pela tomada de consciência, pelas reflexões, por ações que permitam essa reflexão. Eu vou falar de uma experiência que tive aqui com alunos no projeto de extensão, porque aqui em Corumbá há um preconceito muito grande e é muito visível, então os nossos alunos também trazem isso, como eu já disse, trazem isso enraizado social, familiarmente, enfim, né.

LETÍCIA: - Urum

PROFESSORA SUZANA: - Organizamos um projeto que chama Ensino do Português para bolivianos e isso foi uma sugestão de umas alunas minhas que falaram "professora, a gente poderia ensinar português para os bolivianos?" Eu falei, olha eu acho, eu não sou dessa área, aí depois eu fiquei pensando, assim, bom, é uma forma de aproximar esses alunos que tem essa visão tão estereotipada e preconceituosa com relação ao boliviano  de aproximá-los em um contato diferente ao comercial, porque na fronteira existe muito contato comercial, tanto de um lado, quanto de outro, então foi um projeto tão exitoso, porque os alunos que participaram, eles manifestaram isso, falando assim " professora, eu achava que os bolivianos eram outra coisa e eu estou vendo que eles são como nós, eles são pessoas, assim, né" Algo assim que você fala, poxa, mas isso é muito estranho ouvir falar isso, parece que é uma coisa que como é possível ver nesta época, mas é o que acontece e há uma, o que se vê muito nos depoimentos, em vários estudos que eu tive oportunidade de fazer e de ler, uma ideia de que o boliviano é sujo, é pobre, é frio

DAVI: - Nossa

PROFESSORA SUZANA: - É, esses são os termos, sujo, pobre e frio. Olha, eu posso citar pra vocês vários artigos em que foram evidenciados nas pesquisas esses qualificativos, então aí quando os nossos alunos têm contato com os bolivianos e veem que compõem uma sociedade também plural, enfim, aí eles se dão conta do grau de preconceito que eles estavam carregando, então e ver que o caminho de chegada a tratar disso não necessariamente ensinando a língua senão ensinando talvez a língua materna que foi o que aconteceu e que promoveu essa aproximação e essa troca intercultural. Finalmente, isso virou o meu tema de doutorado e eu acabei estudando a interculturalidade, mediado pelas aproximações de ensino de línguas.

LETÍCIA: - E você, Vitor?

VITOR: - Nossa, eu estou aqui chocado com a

TODOS: - [risos]

VITOR: - com a fala da Suzana, ainda processando porque, nossa, muito interessante, assim, e realmente o que eu tinha pensado sobre essa questão era realmente da sala de aula, assim, como esse lugar de transformação sobre essas pré-concepções, sobre essas crenças e justamente, Suzana, eu concordo muito com o que tu colocou de combate, assim, porque eu acho que é mais um processo conjunto de reflexão se aquilo que a gente pensa, de fato, é o que a gente pensa, então eu vejo a sala de aula como um espaço muito positivo num sentido de um local com muitas pessoas diferentes umas das outras, que todo mundo ali, mais ou menos, tem um objetivo, né, que é a aprendizagem e que é um contexto de curiosidade, então é um contexto que essa comunidade de aprendizagem ela está ali para ter troca, realmente ter troca. Então, não sei bem se é uma luta contra os estereótipos, mas é uma reflexão e talvez é uma tomada de decisão em relação a esses estereótipos, né, o que que a gente vai fazer com esses estereótipos, porque como a Suzana comentou, eles estão entrenhados em nossa sociedade, eles já existem, a gente é posterior a esses estereótipos, a gente veio e os estereótipos já estavam aí, só que o que que a gente vai fazer com eles, né? A gente concorda? a gente discorda? Porque que eles são certos, porque que, ou porque que eles não são certos, na verdade, né? Então eu acho que a sala de aula veio assim, nesse sentido assim, de pensar como a gente vai lidar com essas questões e também sobre essa questão, assim, de se tem como combater esses estereótipos fora do ensino de línguas, eu acho que tem essa questão muito assim do discurso, o discurso é muito forte, né, o nosso discurso, né?

DAVI: - Urum

VITOR: - Enquanto falantes de uma outra língua ele é

LETÍCIA: - Urum

VITOR: - Muito carregado do que a gente acredita sobre aquela língua, então eu acho que também tem um pouco dessa questão pessoal, assim, de refletir sobre de onde vem a língua que a gente aprendeu e que a gente fala, mas eu acho que, principalmente, a educação é a grande mediadora, é a grande possibilidade de mediação dessas questões, talvez não seja um combate, mas talvez seja uma reflexão sobre o que a gente aprendeu a acreditar, talvez.

DAVI E LETÍCIA: - Urum.

LETÍCIA: - Bom, uma das crenças, ainda nessa questão da aprendizagem, de ensino de línguas, uma das crenças que a gente vê bastante sobre aprendizagem de línguas é que a imersão no geográfico-cultural, ou seja, viajar até um lugar, uma região onde se fala a língua alvo, a língua que se quer aprender, é necessária para que se tenha fluência em determinado idioma. O que vocês acham? Isso procede ou é um mito? Qual a opinião de vocês sobre o efeito da imersão cultural na aprendizagem de uma língua adicional?

VITOR: - Então, no meu contexto eu percebo que existe um pouco essa idealização do professor de inglês que já fez um intercâmbio para o exterior, entende?

DAVI: - Uhum.

VITOR: - E eu acho isso um pouco problemático, porque a língua inglesa, como eu trouxe antes, existem mais falantes não nativos do que nativos, então certamente a gente, muitas das pessoas que a gente vai entrar em contato utilizando da língua inglesa não são pessoas que nasceram num país de língua inglesa. Então, falando aqui de Florianópolis, por exemplo, que é a cidade que eu moro e que eu estudo, muitas das pessoas que eu já conversei em língua inglesa são pessoas que estavam em trânsito por essa cidade, passando por aqui, em que essa foi a língua que a gente conseguiu utilizar como uma língua de troca e elas não necessariamente eram pessoas que a língua materna delas era inglês. Então, eu acho que existe essa glamourização daquele que morou no exterior, geralmente ou na Europa ou na América do Norte, como uma pessoa que está habilitada para talvez dar aula de inglês, ou para ensinar inglês, sendo que na verdade ter uma experiência intercultural, multicultural, não é o suficiente para se tornar um professor, existem muitas habilidades e conhecimentos subjacentes. Mas, falando especificamente sobre a questão da imersão cultural na aprendizagem, eu acho que é uma coisa muito interessante de se viver, mas que ter esse trânsito geográfico não é o único jeito de ter uma imersão numa língua, eu acho que num contexto em que as pessoas querem falar determinada língua adicional, se as pessoas estão envolvidas nesse processo, engajadas nesse processo, elas têm trocas autênticas e significativas nesse processo, não deixa de ser também uma imersão.

LETÍCIA: - Uhum.

VITOR: - Eu acho que a questão do deslocamento geográfico também vem um pouco nesse sentido de querer validar o que vem de fora como algo considerável, no sentido de pensar que porque fez intercâmbio habilita a… Não sei… Sei lá…

DAVI E LETÍCIA: - Haha (risos)

VITOR: - A ter uma certa fluência. Eu não concordo muito com isso, eu não acho que é o intercâmbio que vai dar a fluência para a pessoa, eu acho que são outras questões, falando no contexto da língua inglesa. Mas, com certeza a imersão cultural pode acontecer de outros jeitos, ela é muito relevante pro processo de ensino e de aprendizagem.

LETÍCIA: - E você, professora Suzana, que vai ser um outro contexto, porque você foi criada com pessoas… Sua língua materna é o castelhano, então acho que vai ser um contexto diferente de resposta, não é, professora?

DAVI: - Aham.

PROFESSORA SUZANA: - Na verdade essas perguntas tem tanto para falar que a gente ficaria aqui horas. Vou tentar resumir um pouco no seguinte sentido. Em 2008, eu fiz um concurso aqui para, eu já era professora de espanhol há muitos anos, já tenho 61 anos, então eu era professora de espanhol desde os meus 30 anos. Então, o que que acontecia? Eu vim para cá com uma ilusão. A ilusão de que porque eu transitei por essa fronteira desde criança, eu já disse isso, mas eu nunca permaneci nessa fronteira, eu de fato vim conhecer a fronteira depois que eu fiz concurso para cá.

LETÍCIA: - Hum…

PROFESSORA SUZANA: - Então, minha ideia, minha ilusão de professora, que estava começando a docência na formação de professores de espanhol, antes eu dava aula nos cursos de línguas, em vários outros âmbitos.

DAVI: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Minha ilusão era poder pensar no seguinte: eu pensava, até já escrevi um artigo sobre isso, eu tinha a ilusão de que eu ia ter um laboratório linguístico a céu aberto, era minha ideia. Então, que eu ia atravessar a fronteira e ia levar meus alunos lá. Já pensava em projetos de extensão, acho que eu sou extensionista da vida toda.

DAVI E LETÍCIA: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: - Eu vou fazer extensão, vou levar meus alunos, vamos lá em Porto Quijaro, eles vão comer as comidas, experimentar, ter esse contato cultural-linguístico, enfim, enfim. Tudo isso, este sonho. E eu falei: nossa, vai ser muito bom. Aí, quando eu cheguei aqui, toda essa ideia de fazer uma imersão ao atravessar a fronteira foi por água abaixo. Então, eu comecei a pensar: mas por que que as pessoas não gostam da língua espanhola? Eu falava. Em primeiro momento eu achei que não gostavam do espanhol. Ou do castelhano, que for. Aí eu fui conhecendo que a questão era mais profunda.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - E aí, esse meu sonho de imersão ao atravessar a fronteira acabou. Mas, eu acho, assim como o Vitor falou, eu acho que há uma glamourização nessa questão da imersão, porque vão para fazer a imersão para curtir. Claro, e esse também é o objetivo, para curtir um lugar, uma cultura diferente, enfim, que tem tudo a ver com a aprendizagem de línguas, mas que isso necessariamente não vai tornar ninguém melhor falante de línguas.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Eu tinha um aluno aqui que acabou sendo jornalista, ele saiu do curso e se tornou jornalista, ele era autodidata em espanhol e ele era um falante perfeito praticamente dentro do que se entende, que ele se conseguia se comunicar muito bem em espanhol e ele nunca tinha ido a nenhum país espanhol falante. Então assim, há vários fatores que vão compor essa ideia, assim como há vários fatores que devems ser tomados em conta com bastante atenção, quando se fala, por exemplo, do professor licenciado, que foi motivo de discussão em vários congressos de professores de espanhol, enfim. Então, isso não qualifica ninguém que é falante nativo de uma língua que seja professor, que ele necessariamente seja um bom professor. E também quem faz uma imersão não significa que conhece bem a língua, dominar eu não gosto muito desse termo.

LETÍCIA: - É haha [risos].

DAVI: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: - Vamos dizer que conhece bem. É que às vezes a gente reproduz algumas ideias. Mas, é isso.

LETÍCIA: - Davi?

DAVI: - É… A gente já está caminhando para o final então essa é, na realidade, a última pergunta.Ela é bem pessoal, assim. A gente sabe que vocês falam outras línguas, que não a materna, e a gente quer saber, é uma pergunta que a gente vem repetindo todos os episódios praticamente, não é, Lê?

LETÍCIA: - Uhum.

DAVI: - E a gente quer saber o quanto da identidade de vocês enquanto pessoas, sujeitos do mundo, ela tem relação com a língua estrangeira, essa língua adicional que em certo sentido vocês adquiriram. Vocês conseguem se ver sem essa língua?

VITOR: - Suzana, quer começar?

PROFESSORA SUZANA: - Pode ser, mas eu vou demorar.

TODOS: Hahahaha [risos].

PROFESSORA SUZANA: - É… Por muito tempo eu achei que a minha língua materna era o espanhol, o castelhano. Só que, foram acontecendo coisas na minha vida que me fizeram refletir de outra forma. Inclusive, essas classificações, como eu já disse, aqui na fronteira a gente tem, a fronteira é um lugar que te faz refletir muito sobre esse tipo de classificações, de nacionalismo, sabe? É boliviano, é brasileiro.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Por que que a minha língua materna é o castelhano? Porque o português também me constitui como indivíduo, como ser humano, como pessoa. Então, ao mesmo tempo que, sim, tenho um vínculo afetivo, talvez por isso poderia se chamar língua materna, mas, ao mesmo tempo, eu tenho um vínculo muito grande com o português. E eu considero também a minha língua materna. Então, assim, eu não acho que uma delas é a minha língua materna, eu acho que as duas me constituem. Eu acho que, assim (risos)... Tem uma coisa que acontece com quem é falante, por exemplo, eu acho que eu falo bem português. Então, às vezes, eu me ouço falando, eu falo: mas o sotaque me constitui também.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Então, todos esses elementos que assim podem se considerar não puros não tem nada a ver, nada a ver. A gente sabe que nos estudos linguísticos não tem essa visão de que “Ah, ela tem sotaque, então não é brasileira, ou ela tem sotaque, não é boliviana” porque eu, na verdade, tenho sotaque em tudo, tenho sotaque no português e tenho sotaque no castelhano. Então, e quem dirá, estou estudando quíchua, e meu quíchua é castelhanizado e aportuguesado.

DAVI: - Haha [risos].

PROFESSORA SUZANA: - Então, assim, tudo isso me constitui como pessoa. Então, essas línguas, como eu já disse no começo, elas me atravessam. E eu considero que, invariavelmente, a gente se identifica, eu me identifico com elas. Quando estou na Bolívia, eu sinto saudades do português, quando estou aqui eu escuto muito espanhol porque eu vivo atravessando a… Haha (risos) a faixa fronteiriça.

DAVI: - Haha [risos]. 

PROFESSORA SUZANA: - E vou para lá. E aqui, quando encontro com os bolivianos daqui, eu falo castelhano, eles até se surpreendem porque eles me identificam como brasileira, muitos bolivianos me identificam como brasileira e foi um choque para mim, de identidade, quando uma vez eu fui perguntar o preço de alguma coisa: “Cuánto sale este…” um produto qualquer cualquiera e me dijeron así: “Cinquenta reais” e eu falei: “Pero, por que me estás diciendo el precio en reales?” Eu: “Ahn?” hahaha (risos). Então, essa questão da identidade, a língua, isso, para mim, essa fronteira me mostra que nós temos que pensar muito mais como Bauman, no líquido que se molda, que se transforma, que não é fixo.

DAVI: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - E naquelas identidades moldadas, a língua moldada, a cultura moldada, isso aí eu acho que já era. Temos que ter um olhar muito mais amplo e que acaba sendo muito mais acolhedor.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Então, eu acho que é por aí mais ou menos a minha resposta.

DAVI: - Muito legal. E você, Vitor?

VITOR: - Nossa, Suzana, eu concordo completamente contigo. Eu adorei tua fala, concordo muito com o que tu trouxe e isso me lembrou também uma música do Caetano Veloso que ele fala que minha língua é minha mátria.

LETÍCIA: - Uhum.

VITOR: - E daí eu estava pensando sobre isso e eu pensei que na verdade, para mim, eu vou parafrasear só trocando o número. Então, as minhas línguas são as minhas mátrias. Então, eu não consigo me imaginar falante de outras línguas hoje em dia, eu acho que muito do que eu sou, muito do que eu quero na minha carreira, na minha vida tem a ver com o fato de eu ser um falante de língua adicional, de língua estrangeira, e eu também compreendo que esse local, no meu contexto especificamente, entendendo o Brasil como um país de muitas desigualdades, é um direito que é negado a muitas pessoas.

DAVI: - Uhum.

VITOR: - Então, o acesso ao ensino de línguas é um direito que é negado e que faz parte dessa minha reflexão, dos privilégios que eu tive por ser um falante de uma língua adicional. Então, eu não consigo me imaginar sem essa língua e hoje em dia muito do que eu tenho feito é pensando no quanto todo mundo deveria se ter esse direito de acesso ao ensino básico, mas também ao ensino de uma língua estrangeira. Então, minha resposta vai nesse sentido, assim, de perceber como a língua também me acrescenta tanto assim, no sentido de conhecer novas realidades e acessar novas possibilidades de mundo que antes disso eu não tinha e que agora eu tenho.

DAVI: - Muito bom, muito bom. É… Lê, vou aproveitar que o Vitor já estava com a fala…

LETÍCIA: - Uhum.

DAVI: -  E já aproveitar que a gente está encerrando também e pedir, Vitor, para você falar um pouco dos projetos que você está envolvido, principalmente o PET, na UFSC, o PET Letras. Eu sei que vocês têm uns materiais muito legais que os próprios alunos, os bolsistas voluntários produzem. Queria que você contasse um pouco, vou abrir esse espaço para você falar um pouco desse projeto. É projeto de extensão, não é? Se não me engano. Na verdade, não é extensão, é um PET, não é?

VITOR: - Exato, exato. Ah, então, eu adoro falar do PET, o PET tem sido a minha casa nesses anos de graduação. E, o que que é um Programa de Educação Tutorial? Então, é um programa no âmbito do governo, com um número x de bolsistas e voluntários, e a gente atua pesquisa, ensino e extensão, então existem vários subprojetos dentro desse programa. No PET Letras - UFSC, acho que, talvez o projeto que a gente tenha, não sei se dá para dizer um foco, mas um dos grandes projetos norteadores é o PET idiomas, que é o curso de línguas que a gente tem para a comunidade externa, onde os professores são todos voluntários, que podem ser acadêmicos ou não, e dentro do PET o que eu tenho mais atuado ultimamente é na formação desses professores voluntários de línguas adicionais. Então, a gente têm feito um trabalho muito legal, assim, há alguns anos e esse ano agora eu integro a equipe dos formadores, de trabalhar questões pedagógicas, questões curriculares, como elaborar o plano de aula, tem acrescentado muito na minha formação, conversar com outros professores, entender as perspectivas de ensino deles, como que a gente pode construir um ensino de línguas solidário, plural que entenda, as diversidades dos educandos. Mas também, o PET não é só isso, então a gente também tem projetos que vão além do ensino, relacionado à pesquisa e extensão. Inclusive, essas publicações que a gente tem, esse material, é o ComunicaPET, que é como se fosse uma coluna semanal em que cada bolsista produz um texto, um gênero mais jornalístico, talvez, não sei. Mas, é uma matéria sobre algum assunto que seja interessante, e toda semana a gente publica no site do PET. Então, queria convidar vocês, também os ouvintes, os linguarudos…

DAVI: - Uhum. Que legal.

VITOR: - É… Para acompanharem o PET Letras, o nosso instagram é @petletras.ufsc, e acompanhar as nossas publicações, nossos projetos, nossos eventos. Então, às vezes a gente tem eventos online também, para o pessoal poder participar. Então, fica aí o convite a todos. E muito obrigado pelo convite na participação do podcast.

DAVI: -  Muito bom, Vitor!

LETÍCIA: - Professora Suzana, você também já assumiu aqui, anteriormente aqui nesse episódio que é uma extensionista de coração. Então, eu queria que você falasse também um pouco sobre a sua atuação nos programas de extensão e também no grupo de estudos, por favor, professora.

PROFESSORA SUZANA: - Tá bom! Então, eu gosto muito dos projetos de extensão porque eu acho que tem que ser totalmente vinculado à comunidade.

DAVI: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - E eu acredito que a extensão é essa ponte. Então, sempre gostei da extensão por isso. Embora a extensão seja o irmãozinho pobre da pesquisa.

DAVI E LETÍCIA: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: - E menos prestigiado também. Mas, eu acredito que a extensão é aquilo que nos traz vida a universidade, dá sentido a todos nossos estudos. Porque eles vão se confrontar, vão se enriquecer, vão ser discutidos e vão ser acrescentados em contato com a sociedade. Então, gosto muito de projeto de extensão. Atualmente estou em um projeto autoral, sobre ensino de línguas, porque também outra coisa que a gente não pode falar, por exemplo, eu vou trabalhar ensino de espanhol, de português, não dá, temos que pensar nas línguas. Então, estou com esse projeto, e esse projeto vai ter um alcance também as escolas, porque, em vista da migração pendular que existe aqui, que a migração pendular é assim, os bolivianos que vêm trabalhar, estudar aqui em Corumbá durante a manhã e voltam a noite, isso chama migração pendular.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Então, por esse motivo temos muitos alunos que são denominados alunos bolivianos, mas que, na verdade, eles têm RG, mas são denominados bolivianos. Então, esses alunos, eles têm muita dificuldade na aprendizagem de português. Então, esse projeto vai a algumas escolas. Inicialmente uma escola que é o Caic, que é uma escola que tem um índice muito alto de alunos bolivianos porque lá fica justamente na entrada da cidade entre Corumbá e Puerto Quijarro. Então, esse é um projeto. Outro projeto que eu faço parte é sobre as línguas originárias, neste caso estamos trabalhando com as línguas originárias na Chiquitania boliviana e sobre a escolarização do Bésiro na Bolívia. É o estudo que a gente está desenvolvendo em contato com os professores bolivianos. E outros projetos que são sobre encontros entre professores tanto da Bolívia quanto do Brasil para conversas sobre metodologias, didáticas, esse intercâmbio que eu acho que é muito saudável e necessário na fronteira, porque dessa forma as pessoas se conhecem, conversando. Então, promover esses encontros entre professores de ambos os lados já era a proposta do programa Escolas de Fronteira, que eu coordenei em 2012 até sair para o meu doutorado. E foi extinto quando assumiu o governo Temer.

LETÍCIA: - Uhum.

PROFESSORA SUZANA: - Então. Aí, esse encontro com os docentes é algo que sempre permaneceu e que agora vamos retomar esses encontros entre docentes das escolas de Puerto Quijarro e Corumbá. Isso e, puxa, e tanta coisa que a gente tem. Eu convido o pessoal, os linguarudos e linguarudas.

DAVI: - [risos]

PROFESSORA SUZANA: - A que venham aqui nesta fronteira e conheçam o potencial de pesquisa, de estudos que tem aqui. Precisamos desenvolver isso, porque a fronteira do Sul, por exemplo, é muito pesquisada e tem muita gente interessada, que vai lá e desenvolve suas pesquisas. E aqui na nossa fronteira nós não temos braços para abraçar tanto trabalho enriquecedor, então assim, eu convido vocês e os ouvintes possam vir aqui, estou aqui à disposição para conversar de tudo que for interculturalidade, sobre intercâmbio, sobre possibilidade de pesquisa e extensão. Para finalizar eu quero agradecer o convite de vocês, foi feito pela Letícia e gostei muito de conversar com o público que vai se estender cada vez mais, por isso eu digo, eu estou à disposição para qualquer contato ou tirar uma dúvida, quero sempre manter essa comunicação. Eu agradeço muito, e parabenizo a prof Ana Karla pelo projeto e estamos aqui.  

LETÍCIA: – Eu que agradeço mais uma vez, a gente sempre coloca quanto na postagem e nas descrições dos episódios o contato de vocês, e vamos marcar vocês no instagram para que as pessoas possam realmente continuar esse diálogo.   

PROFESSORA SUZANA: –  Foi um prazer compartilhar essa troca de conhecimento com você Vitor.

VITOR: – Eu que agradeço muito professora, eu aprendi muito contigo hoje, abriu a minha mente para muitas questões que não havia pensado então, sou eu que agradeço. Muito obrigado! 

LETÍCIA: – Muito obrigada, mais uma vez. Nós sempre estaremos à disposição para vocês.

DAVI: – Muito obrigado por hoje!

LETÍCIA: Um grande abraço cheio de carinho para vocês dois que participaram.                       

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