Transcrição T0 Episódio 1 - ¿jaha pio charlar del silenciamento do avañe'ẽ?

ANA KARLA: Hey, everybody! Este é o primeiro episódio da temporada especial do LínguasCast, o seu podcast sobre linguagens, identidades e otras cositas más.


ANARANDÀ: Eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis, eles tagarelarão.


LIZ: Eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis, eles tagarelarão.


ANA KARLA: O título do episódio de hoje é: “¿jaha pio charlar del silenciamento do avañe'ẽ?” Let’s que vámonos!


LUIZ: Hola, hello, e aí, linguarudos, linguarudas e linguarudes! Sean bienvenidos à temporada especial do LinguasCast. Eu sou o Luiz com z, por favor.


HENRIQUE: Y yo soy Henrique. Tapeguahẽ porãite ore podcast, bem-vindes ao nosso podcast.


LUIZ: Ok, ok, então, bora pro tema de hoje, ok? Que é o silenciamento da língua guarani, mesmo em espaços fronteiriços, como aqui, o Mato Grosso do Sul.


HENRIQUE: Podemos entender o silenciamento linguístico como um impacto do preconceito sobre uma comunidade linguística, onde os saberes linguísticos ao invés de legitimados acabam sendo apagados, negligenciados, hierarquizados e marginalizados, deixando o falante com dificuldade de encontrar um espaço seguro e legitimado em sociedade para falar sua língua. E para sobre ele, nós convidamos a professora Liz Benites e a professora e rapper Anarandà


LIZ: Aguyje (obrigada) Eu vou deixar a Anarandà começar, pode ser? Porque estou curiosa para ouvi-la também e seguidamente, eu vou me apresentar.


ANARANDÀ: Ha upéi! Mba’éichapa, che renduva. (E aí, tudo bem? Olá, pra quem está me ouvindo). Olá, meus ouvintes, eu sou a Anarandà, indígena guarani kaiowá, daqui do estado de Mato Grosso do Sul. Eu sou cantora, compositora, sou atriz, sou digital influencer e também sou professora de língua materna guarani e hoje eu estou aqui para dialogar com vocês, juntamente com Liz, Henrique e Luiz Alencastro. Mas eu estou muito feliz por estar participando avy’aiterei, che renduva (Estou muito feliz, pra quem me ouve), tamo aí, junto.


LIZ: Mba’éichapa. Che réra Liz, che Paraguaygua. (Olá, tudo bem? Meu nome é Liz, sou paraguaia) eu sou paraguaia e moro aqui no Brasil há 12 anos, sou professora de guarani junto com meu esposo, Luiz, conhecido como Beto nas redes sociais, temos a página “Dicas de Guarani”, onde buscamos divulgar língua e a cultura guarani, falada no Paraguai, especialmente para brasileiros que estão morando no Paraguai, que estão pensando morar no Paraguai , brasileiros que moram na fronteira e, bom, nosso público tem ido crescendo e se diversificando no decorrer do tempo. Estou muito feliz pela oportunidade de conversar com vocês sobre o nosso projeto, sobre o que estamos desenvolvendo no perfil desde há pelo menos três anos.


LUIZ: Nós também estamos muito felizes, de verdade.


HENRIQUE: Nossa! Muito feliz de que vocês aceitaram o convite. O nome de vocês foi, assim, foram os primeiros nomes que vieram na minha cabeça quando começamos a discutir esse tema, tema que eu pesquiso bastante, eu sou neto de paraguaios, então é uma coisa bem recorrente aqui dentro de casa, então eu falei assim: quem que a gente pode chamar? E eu fico muito feliz que vocês deram o “sim”, vocês aceitaram participar. Estamos, assim, profundamente felizes com isso. 


LUIZ: Nossa, sim, de verdade. Vocês não imaginam a felicidade do Henrique nas reuniões do Línguascast. 


LIZ: Que bom! Que ótimo! E teu avô falava guarani, Henrique?


HENRIQUE: Então, meu vô falava guarani, só que só tinha minha vó com quem conversar. Então, sempre tinha com quem conversar, só que desde que meu vô faleceu há uns 10 anos, minha vó tem se restringindo a conversar em casa umas poucas palavras comigo, ela tenta me ensinar guarani e também com a família dela no Paraguai, ela liga pras minhas tias e elas ficam conversando.


LIZ: É um dos caminhos para a perda da língua, a falta de interlocutores. Você acaba não tendo com quem conversar na língua e eu tenho recorrido bastante a essa prática para manter minha fala em guarani. Ligar a meus familiares, em especial a minha mãe ao meu avô, para conversar em guarani, desse modo, tentar sempre manter a língua, relembrar vocabulário. Se uma língua não for praticada, com o tempo, ela é esquecida. Então, eu acho muito incrível toda vez que eu vou ao Paraguai e relembrar algumas palavras que estão um pouquinho esquecidas, não muito presentes e inclusive me encontrar-me com algumas variantes, também, regionais. Então, é isso que queremos também na página, formar interlocutores, ter cada vez mais interlocutores, falantes de guarani. Nós já abrimos, inclusive, novas turmas de guarani, a pedido de nossos seguidores e a interlocução com essas pessoas tem sido muito boa, então, nosso objetivo é, além de difundir a língua, é que com o tempo nós possamos aumentar nossa comunidade de falantes de guarani. E, bom, é isso.


HENRIQUE: Bem, já que a gente já tá falando sobre essa relação com a língua. Vocês podem contar pra a gente como que se dá essa relação de vocês com a língua guarani?


LIZ: Bom, vou começar eu, então. A língua guarani é minha língua materna, é uma das minhas línguas maternas, eu cresci em um ambiente, onde falar guarani e espanhol era muito natural, então eu posso dizer que adquiri as duas línguas de maneira simultânea e claro que a aprendizagem do espanhol foi mais sistemática na escola. Então, quando eu fui para o primeiro ano pré-escolar e o primeiro ano do ensino fundamental, eu me deparei com a língua espanhola, especialmente em sala de aula, embora com os colegas, falássemos, continuássemos falando guarani nos intervalos, também me deparei com disciplinas ofertadas em língua espanhola e também me deparei, depois, logo, logo, foi feita a reforma educativa no Paraguai em 1984, que determinou a inclusão do ensino da língua guarani nas escolas e até hoje eu me lembro da minha primeira aula em guarani, foi uma experiência muito linda de ver as seis vogais no quadro da escola e até agora, eu me lembro do professor escrevendo com a piza, como que... me esqueci do nome, com o giz no quadro “a,e, i, o, u”, “y”, que é a vogal que não temos no espanhol e no português, a vogal central, que é uma vogal desafiadora para quem não é falante nativo de guarani e depois as vogais nasais: “ã, ẽ, ĩ, õ, ũ, ỹ” e até agora eu tenho essa imagem gravada, e isso foi, e é uma lembrança que levo, que eu tenho até agora, por isso que é tão importante o ensino dessa língua nas escolas, porque uma língua que não é vista, ela não é lembrada e com o tempo ela é esquecida, então foi uma experiência muito bonita e, na minha família, sempre conversamos em guarani, essa era a conversa principalmente com os homens e eu não sei se isso funcionava com as outras famílias, mas eu percebia que com as mulheres da minha família, eu falava em espanhol. Minha vó tentava que eu aprendesse espanhol, embora ela fosse guarani-falante e ela não tivesse terminado o segundo ano do fundamental, ela fazia muita questão que eu aprendesse espanhol, porque na visão dela era a língua que me daria, me abriria oportunidades futuramente de progredir na vida. Você vê a valorização da língua, ela percebia que existia uma valorização que diferenciava muito bem a língua espanhola da língua guarani, eu cresci, eu nasci e cresci e morei até a adolescência numa cidade pequena no interior do Paraguai e hoje, lembrando disso, eu vejo que minha vó já tinha essa percepção em relação à língua. Bom, com o decorrer dos anos, depois que eu saí dessa cidade pequena, eu me dei conta que nos centros, nas cidades, eu fui para Ciudad del este, fronteira com Foz do Iguaçu, eu já via que o falante de guarani, aquele que era falante de guarani, ou falante de espanhol com sotaque guarani era visto de outra forma, isso era muito perceptível. Então, tudo isso, acho que conversa um pouco com o título desse podcast, que tem a ver com o silenciamento do guarani, como disse o Henrique que abrange um preconceito linguístico ainda vigente no Paraguai. Eu não se vocês gostariam, depois eu converso um pouquinho com vocês sobre as políticas linguísticas, mas eu vou deixar agora a Anarandà falar um pouco sobre a experiência dela com o guarani, estou bastante curiosa também de ouvi-la e de conhecer como isso se dá e como ela vê o guarani na comunidade dela.


ANARANDÀ: Muito bom, Liz! Bom, a minha experiência com a língua guarani, eu já nasci também falando esse idioma, a gente no território indígena, a gente só conversa em guarani e é um pouco contrário da Liz, a Liz fala de espanhol e a mim já vem o português mesclado, assim, o guarani e português mesclado. Então, desde a minha adolescência até os 15 anos, eu só falava guarani, eu comecei a falar o português bem depois, ou seja eu falava o português tudo errado, eu falava assim, por exemplo: eu quero comer água, eu quero tomar comida. Então, era engraçado o meu português, então, o guarani foi a minha primeira língua materna, onde eu aprendi a sobreviver com o guarani, a sentir como é bom viver livremente, falando o idioma que está dentro da floresta, que está dentro da mata, onde nós, povos indígenas, estamos presentes, não exatamente isolados, mas hoje em dia estamos em vários lugares, por exemplo, universidade, em vários lugares que o indígena está presente que leva consigo o guarani. Então, o guarani, através dela é que nós sobrevivemos, através dela é que nós respiramos. O guarani é a nossa vida, o guarani é o nosso ñande reko (nossa vida), né? É o que mostra a nossa realidade, da onde a gente vem e carrega uma ancestralidade muito forte, esse idioma traz em si uma história, eu falo sempre pras aquelas pessoas que falam guarani, que hoje em dia não está mais no território, eu falo que a aldeia mora dentro de cada um que fala guarani, que ela carrega uma história muito forte consigo e aonde eu for eu to levando esse idioma comigo, mas para eu chegar a manter essa língua forte e trazer para rede social não foi fácil, assim, a minha experiência. Eu tive que passar por várias dificuldades, me deparar com o português que não é a minha primeira idioma, tem muitas linguagens técnicas que eu não consigo ver, trazer isso pra realidade ou traduzir de forma mais coerente, de forma mais clara e isso foi alguns desafios que eu enfrentei durante todo esse ano para eu me tornar, hoje em dia, uma pessoa conhecida na rede social por trazer essa língua materna não só na rede social, mas também na música, onde eu falo as principais temas que são questões ambientais, violência contras às mulheres e outros conteúdos que eu abordo o tema guarani, com isso, eu trago o ñomongueta (diálogo), que é um diálogo, onde é o centro de tudo, né? O que a gente tá fazendo aqui é um ñomongueta (diálogo), é um diálogo. Isso traz uma conexão mais firmes com a língua guarani, com isso eu tenho ganhado muito espaço nas redes sociais, trazendo esse (Guarani). Mas, sim, também, tem pessoas, várias pessoas, que falam guarani, guarani nhandeva, myba e kaiowá, a gente tem os nossos idiomas, os nossos dialetos, muda uma pequena letra, uma pequena pronúncia, que às vezes, quando você ensina algo, sempre aparece, quem? As pessoas que são os haters, que as pessoas fala, daí fala, tipo assim, pra vc que você tá ensinado errado, que você não sabe ensinar, então, isso, também, de qualquer forma, já vai mexendo no seu psicológico.

 

LUIZ: Então, nos dias atuais, pra você abordar um um idioma, uma língua materna, você tem que estar muito bem preparado psicologicamente, emocionalmente e fisicamente, sabendo que você está se expondo lá e trazendo, né? A língua materna. Porque muitas vezes, hoje em dia, as pessoas não querem mais falar a língua materna, só adotam mais aquela, aquela língua que foi colocado pra gente falar, então, com isso, a gente vai perdendo a nossa ancestralidade, a nossa origem. Então assim que chega esse silenciamento, né? Desse, desse idioma, é devagar né? As pessoas vai colocando isso, eu já ouvi pessoas falando que o Guarani, eh, eles ficam com vergonha de falar em Guarani, porque, não porque eles querem, mas alguém colocou que essa língua não é, eh, principalmente no território indígena, como o preconceito é muito alto, as pessoas preferem, ah, falar o português do que falar a própria língua materna. Por isso que eu entrei pra poder resgatar essas línguas maternas que geralmente, ah, em vários territórios do Mato Grosso do Sul as pessoas falam. É isso.


LUIZ: Não, eu acho muito legal o seu trabalho, Anarandá, porque você faz essa divulgação da, da língua guarani através do rap, né? Que é algo que pelo que a gente tem aqui, pelo menos, na maioria do estado que, obviamente, tem toda uma diversidade linguística gigantesca, mas que fala a maioria português e tem essa imposição do português você trazer o um som tão novo assim, eu acho assim incrívelde fato, acho incrível. E eu queria saber sobre como que é ser literalmente pioneiro nesse movimento, assim, sabe? De fazer rap, de fazer arte e de expor a sua arte e de alcançar novos públicos com a sua língua materna. Como que você se sente? Assim, o público, e também estando nessa posição?


ANARANDÁ: Bom, no primeiro eu fiquei até com medo de fazer música, eu falei: será que as pessoas vão gostar? Será que as pessoas vão querer ouvir?. Aí eu comecei a refletir como em inglês, espanhol, outros idiomas coreano e porque que eu não posso cantar na minha língua materna? Aí eu comecei a pensar muito nessa questão de como as pessoas vão reagir, por exemplo, a uma música. Por exemplo: (música).

Por exemplo, as pessoas ouvem uma música e falam assim: nossa, que idioma é essa que ela tá cantando? Será que é coreana? 


LUIZ: Urhum.


ANARANDÁ: Então já aconteceu comigo quando eu comecei a trazer música sobre mulheres em Guarani, que é: nendive akañyse anirekyhyje ko’ẽrõ asaje, ko’ẽrõ asaje, ko’ẽrõ asaje (quero fugir com você, não tenhas medo, amanhã ao meio dia).

Quando eu comecei a cantar isso nas redes sociais, choveu o comentário lá dizendo: que idioma é essa? Você mora na Tailândia? Você é boliviana? Você é venezuelana?

Então choveu comentário assim de curiosidade porque ela chama muito a atenção. Então eu trago, assim, com muita força, né? O Guarani na música já levando os temas relacionados, as temáticas são muito discutidas nos dias atuais, que são sobre o meu povo, né? Sobre a questão indígena. Então eu vejo como que o público reage ele é muito curioso, aquelas pessoas que nunca ouviram o dialeto, o idioma, ficam curiosos, vão lá ver qual é a tradução, do que que fala. Então, tem uma música que chama: péicha che ha’e, kuñangue omombe’u, ko’anga ndaikuaái mba’epa ojehu (assim eu falo, as mulheres contam, agora não sei o que aconteceu), já trouxe mesclado do espanhol, né? Seria as lembranças da minha avó. Então aquela música, as pessoas ficaram, está lá disponível no meu canal do YouTube, as pessoas começaram a falar: nossa, que idioma é essa? Muito bom, a sonoridade é uma outra vibe, dá uma outra sensação quando você canta isso com o instrumental dá a sensação de que está na floresta, você trazendo todos esses instrumentos junto com o idioma Guarani, ela é muito rica, as pessoas querendo ver, ouvir e você ver o resultado de que a língua que você fala não é feia, tem a mesma importância do que inglês, espanhol, assim como coreano, francês, alemã, que as pessoas gostam muito de estudar e ver, então, ouvindo que você vai aprender a cada dia mais esse idioma que é o Guarani.


LUIZ: E também a língua Guarani desempenha o mesmo papel nas nossas vidas, como o inglês, o francês e assim por diante. Porque, assim como tem milhares de de brasileiros que nem falam inglês, que nem falam espanhol e estão cantando músicas em espanhol e cantando músicas em inglês e curtindo músicas em inglês, a gente também poderia curtir uma música em Guarani também, né? Eu acho isso o mais forte da língua também, que isso traz outras questões, que envolvem as nossas subjetividades, quem a gente é e as nossas emoções também. Liz, eu fiquei curioso sobre uma coisinha que é: você falou sobre como foi marcante pra você, né? Ver o Guarani na quadra, né? No caso no quadro, né?  as quantas vogais? Seis vogais, sete, seis vogais do Guarani? 


LIZ: Seis vogais, no total são doze, seis vogais orais e seis vogais nasais. 


LUIZ: E eu queria saber se você sentiu que os seus amigos também daquela época ficaram assim também, sabe? tipo: meu Deus, está ali no quadro, está realmente institucionalizado, sabe? 


LIZ: Pois é, olha só, eu acho muito interessante porque eu acho que é a primeira vez que eu, hoje, aqui no podcast, é a primeira vez que eu contei essa lembrança, eu, inclusive com meu esposo falo bastante sobre o Guarani, sobre minha experiência com Guarani, em especial na infância e acho que eu nunca contei pra ele essa experiência que eu tive. Então, essa conversa com vocês já é muito, muito boa nesse sentido, porque me trouxe à tona, trouxe à tona essa lembrança que eu sempre tive guardada lá e nunca escrevi ou comentei com alguém. Eu não consigo te responder se meus colegas viram dessa mesma forma, porque muito provavelmente eu não, naquele momento, eu não via a dimensão daquilo, né? A dimensão política do significado daquilo. Eu me lembro que nós fomos avisados que teríamos, começaríamos a ter aulas de guarani e aquilo era novidade, para mim especialmente, era uma novidade: ai meu Deus, vou ter aulas de Guarani, vai ser muito diferente do espanhol, como vai ser isso?. Mas era a minha língua, era uma língua que eu falava com meus primos, com meus vizinhos, era a língua que eu mais falava no dia a dia, porque com certeza o espanhol é, eu falava espanhol, mas o espanhol na minha infância ocupava algum lugar de fato menor, porque todo o meu entorno era falante Guarani. Então eu morava numa comunidade Guarani falante e não saberia te dizer, mas hoje me lembrando, eu me lembro da novidade, do assombro, de que eu fiquei maravilhada, olheiras, as doze vogais escritas no quadro e isso me faz pensar no quão importante é ter uma língua escrita. Ter uma língua institucionalizada, porque isso dá status ali, né? A partir do momento em que você faz isso, porque o estado determina que uma língua vai ser também oficializada, vai para o mesmo espaço que a língua, no caso, né? a língua europeia que é o espanhol né? É uma forma de dar status a essa língua. E, bom, é isso. 


LUIZ: isso tange diretamente o nosso tema né? Que é o silenciamento da língua e como há vários espaços em que a nossa língua materna ela não pode ser usada, de fato, como por exemplo dentro das escolas, né? E o comício causa esse impacto na gente. Acho muito importante


LIZ: Sim. Com certeza. Com certeza. E isso tem tudo a ver com com a perda da língua. O silenciamento leva a perda da língua, porque a medida que o falante vai vendo que sua língua não é utilizada em determinados espaços,  como a Anaranda disse, a medida que o falante opta pelo português ou opta pelo espanhol,  percebe que essa língua lhe dará status, lhe dará maior acesso a determinadas esferas, definitivamente, esse é o caminho, a perda da língua. Então, a medida que nós formos vendo que a língua tem, é utilizada em diferentes esferas, digamos que isso mostra ao falante que essa língua pode ser utilizada e eu só vou comentar um pouquinho sobre o trabalho da Anarandá, eu não sou artista (rsrsrs), eu me dou melhor como professora, tem um pouquinho de inveja aí, mas é uma inveja do bem, o trabalho dela é muito bonito, Anarandá, o trabalho que você está fazendo é muito significativo.


Nós sempre conversarmos aqui em casa sobre isso,  em relação ao Paraguai, por exemplo, o que acontecia com o Guarani? aparecia nas produções culturais no Paraguai, no entanto sempre aparecia naquelas canções tradicionais. As tônicas paraguaias, e o que acontece? o jovem que vai consumindo outros produtos culturais, outros estilos como rock, música pop, rap mesmo, não vai dialogando, vai consumindo em outras línguas, em inglês, em espanhol e não encontra um estilo musical que ele está consumindo, um estilo musical do tempo dele, que seja em uma de suas línguas maternas, no caso o Guarani. Então o consumo cultural contribui para a manutenção de uma língua e para a aprendizagem de uma língua. Eu estou falando isso como professora agora. Estou dando aulas de espanhol também, eu sempre falo para os meus alunos: quanto mais vocês consumirem produtos culturais na língua que vocês estão aprendendo, mais vocês facilitarão o aprendizado de vocês, ampliará o seu vocabulário. Então, o fato de ter pessoas como Anarandá produzindo música em estilos musicais que são consumidos pelos jovens, pela geração jovem, sem dúvida, é um trabalho de política de línguas muito importante e no Paraguai também temos muitos grupos que agora surgiram, que estão explorando diferentes gêneros musicais. Então, isso é muito bom porque dá status à língua, temos também, agora, a produção de seriados em Guarani e é muito interessante porque muitos falantes estão dizendo que esse seriado inclusive está fazendo muito mais do que o estado já fez nos últimos vinte anos, porque é diferente, eu digo como falante e como uma pessoa que nasceu e cresceu numa cidade de interior, numa comunidade que fala guarani. É muito diferente você ir à escola, OK, aprender o Guarani, inclusive o ensino do Guarani nas escolas do Paraguai tem vários problemas, não é o foco da nossa conversa de hoje, mas quem sabe conversar mais em uma outra oportunidade, mas é muito diferente de assistir um seriado, de ver os personagens conversando naquela língua que você fala, naquela língua que você conhece. Então isso é fantástico e aí vale aquela, aquela frase popular, né? Quem não é visto não é lembrado, então uma língua que não é vista, que não é ouvida, não é lembrada, não é falada e logo ela é esquecida.


HENRIQUE: Inclusive, agora mesmo, falando nisso de questão de produção cultural,  o grupo Tierra Dentro foi nomeado ao Grammy Latino com um trabalho que o disco é inteiro em guarani, o Ayvu (barulho)


LIZ: exatamente.


HENRIQUE: Inclusive, o álbum é maravilhoso viu? Escutem.


ANARANDÁ:  Estamos acompanhando, estamos acompanhando isso, isso é muito bom


LIZ: Sim, isso realmente e  então nós precisamos de mais pessoas, assim como a Anarandá atuamos no campo cultural e colocando em circulação a língua. E é muito interessante, né? Porque as pessoas começam a ouvir que língua é essa e aqui realmente, a política do Estado no Brasil foi muito eficiente no sentido de silenciar as línguas, porque realmente conseguiram  desvincular o brasileiro de sua língua nativa. Porque quando eu vim aqui ao Brasil, a primeira coisa que eu reparei foi na toponímia. Ver os nomes das cidades em Guarani. E isso te diz,  quer dizer que aqui também teve Guaranis? É isso? Eu me lembro andando por Caarapó  com meu esposo. Carapó? É ka'a rapo, raiz da erva.

Eu morava numa civilidade chamada Ivoti, é uma cidade de colonização alemã com nome do bairro Guarani e "yvoty", flor. Então tudo isso nos mostra que a extensão e de que esta terra brasileira também pertenceu e pertence aos povos indígenas. Né? Aos povos de falantes de diferentes línguas nativas.


HENRIQUE: pra você, o que significa dizer que uma língua foi ou é silenciada? Você já se sentiu silenciada?


LIZ: São duas perguntas, né? Então vamos começar pela primeira. Não sei se a Anarandá quer se adiantar, quer começar?


ANARANDÁ: Não, pode continuar. Só tô ouvindo. 


LIZ: Uma língua que foi silenciada, bom, é o que acabei de comentar sobre o próprio brasileiro, o povo brasileiro que, bom, nem memória tem sobre as línguas indígenas. Então, é… você fala às vezes para um brasileiro “Ah! Temos tantas línguas indígenas que ainda estão sendo faladas no Brasil” para um brasileiro comum, digamos assim, né? Não aquele que está estudando de repente na universidade, especialmente fazendo uma cadeira no curso de letras. (risos) Fora isso, acho que para maioria, as línguas indígenas pertencem basicamente às comunidades indígenas, né? E nem falam das comunidades indígenas daqui do Rio Grande do Sul, por exemplo, onde eu estou. Acho que no Mato Grosso do Sul, as línguas indígenas ficam mais evidentes, porque as comunidades são mais evidentes, mas aqui não, então aqui, por exemplo, para os brasileiros daqui, para o gaúcho, o Guarani, as línguas indígenas ficam lá na região do Amazonas. Ou alguns que são um pouquinho mais avisados chegam a mencionar Paraguai, então, isso é uma língua silenciada, uma língua que… e há diferentes formas, tem até um livro da Eni Orlandi que é “O silenciamento linguístico”, né? Onde ela fala bastante sobre esse assunto. Então, no Paraguai, embora tenhamos políticas linguísticas, embora o Guarani seja oficial desde 1992, que seja ensinado nas escolas desde 1994, ainda existe um processo de silenciamento. Então, aí entramos, por exemplo, na questão da própria formação de médicos, por exemplo. Você tem falantes de Guarani que vão aos hospitais públicos que não são atendidos em sua língua materna que é o Guarani, que são basicamente monolíngues. Essa também é uma forma de silenciamento, porque o falante começa a ver que ele não será compreendido na sua língua. Ou leva um intérprete com ele, ou, às vezes, bom, vê que definitivamente “meu filho não vai passar pelo o que eu estou passando”. Entãofd, são diferentes formas de silenciamento. 

Agora, é… a segunda pergunta diz respeito quanto a mim. Olha, eu não me lembro assim, de ter passado por isso de alguma forma tão evidente. É, bom, como eu disse, eu cresci numa comunidade de falantes Guarani e um pouco de Espanhol e quando me mudei pra cidade, como eu sabia Espanhol, eu sabia onde utilizar uma língua e outra, então esse bilinguismo me permitiu circular bem. E no Paraguai, o preconceito é muito social e eu vou colocar aqui eu não sei depois eu repenso e digo pra vocês cortarem minha fala se eu me arrepender do que eu vou falar. (Risos) Mas o que eu vejo assim, por exemplo, hoje o guarani está muito em evidência nas redes sociais e quando uma pessoa com traços que pertence a uma classe social, média-alta, falando em Guarani, eu… a impressão que eu tenho é que há uma percepção diferente com relação a alguém que está falando em Guarani, me refiro ao Paraguai com relação a uma pessoa de classe média-alta. Eh por quê? Por que se a pessoa tem um Espanhol que é considerado bom, que é considerado bom. E tem uma questão ali relacionada a classe social, uma percepção minha. E me parece que aquela pessoa que só fala Guarani, que não conhece Espanhol, que pertence a uma classe social desfavorecida, é vista com outros olhos. E é muito provável que essa pessoa sinta-se vítima de preconceito linguístico e social, mas estou a falar numa perspectiva muito pessoal, seria interessante ver se há pesquisas com relação a isto que estou afirmando, ou de repente, desenvolver uma pesquisa nesse sentido. Enfim, vocês poderiam também opinar com relação a isso, mas é uma percepção que estou colocando aqui, muito particular, né?


HENRIQUE: Bem, eu não consigo opinar muito em relação a essa última, até mesmo porque eu não tô muito conectado em relação à… às mídias sociais do Paraguai. Então não tô muito inserido nessa internet… como passo na daqui do Brasil, então na que vou estar mais inserido é aqui. Mas é sim, uma percepção interessante que você comentou, porque isso fica bem perceptível quando acompanho alguns perfis paraguaios no insta… Nitidamente são pessoas que são de uma classe social mais abastada, por exemplo, é… você vai ter uma percepção dos comentários, assim, Guarani, que geralmente, ou vai ser alguns paraguaios que vão tá elogiando, falando: “Parabéns por levar a nossa língua pra frente”, ou você vai ter aquela grande parcela de paraguaios reclamando assim: “você está falando errado, tá falando mal, tá pronunciando mal”.


LIZ: Sim.


HENRIQUE: Enquanto que quando você tem, é… paraguaios que são de uma classe social um pouco mais baixa, é… menos favorecida, por assim dizer, você não vê com tanta frequência essa quantidade de comentários, nem de elogios, nem com o pessoal reclamando que você tá falando errado. Você vai abrir e descobrir comentários em Guarani na verdade. (Risos)


LIZ: Sim, e vou dizer…. Vou agregar um pouquinho, é… vou contribuir um pouquinho mais, e…


HENRIQUE: Pode falar. (Risos) Tem dois acadêmicos de licenciatura 


LIZ: (Risos) Sim! Pegando um gancho do que a Anaranda falou, em nosso perfil também, no começo, bem no começo, quando eu não falava que era paraguaia, eu recebia muitos comentários criticando a página e os comentários eram muito interessantes, porque eu via… eu ia olhar depois e via que vinham de paraguaios. E tinha muito aquela coisa, me parece também, me parece, de que: “Ah! Você não é paraguaio! Você é uma brasileira querendo falar uma língua que não é sua! Então, portanto, você não está capacitada suficientemente para falar sobre essa língua”... Então, é… tinha sim esse tipo de comentários. Depois que eu comecei a deixar já na página: “uma paraguaia morando no Brasil”; diminuíram esses tipos de… diminuíram esses tipos de comentários, né? Mas tinham bastantes pessoas também querendo corrigir, é… mas não de uma forma colaborativa… A Anaranda também deve perceber quando as pessoas não estão querendo contribuir de uma forma positiva, se não, tentando mais é… tentando diminuir o trabalho de divulgação que a gente está fazendo. Então, nós também passamos por isso, no começo era bem mais e agora acho que teve uma certa aceitação nessa comunidade pequena de haters que existe… existe em todos os lugares. 


ANARANDÁ: É, exatamente. A gente tá superando, né, Liz? Esses comentários assim. Na minha rede social também vai muitas pessoas, assim é… falando, é… é… querendo diminuir mesmo o que a gente tá fazendo, pra gente desistir, né? Daquilo que a gente é, então, eu… respondendo já a pergunta, na maior parte eu já me senti assim silenciada por falar esse idioma. Primeiro, porque aqui no território indigena a gente só fala no idioma Guarani. Então pra gente sobreviver, a gente tem que tá em busca do conhecimento, ou seja, aprender o Português pra você sobreviver, porque hoje em dia você tem que ocupar o espaço, né? Pra você ser ouvida, então muitas vezes, eu e minha família íamos na cidade, por exemplo, a minha mãe precisava ir, por exemplo, em um banco, por exemplo, abrir uma conta, não tinha ninguém pra atender e falar, por exemplo, o idioma e a gente ficava cheio de dúvidas, a gente ficava horas assim na época quando eu era criança e eu não sabia falar o Português. Isso vinha, mexia muito comigo, porque eu falava assim: “Nossa! Como as pessoas não entendem nosso idioma, não buscam nem aprender o nosso idioma”. E eu lembro que quando eu tinha 8 anos, a gente saiu do território, a cidade fica a 8 quilômetros da minha aldeia, e a gente foi a pé pra ser atendida, por exemplo, em um órgão público, assim… e a gente não foi atendido porque a pessoa que estava atendendo lá não sabia conversar com minha mãe, porque minha mãe não sabia falar bem o Português. Então isso, de qualquer forma, é uma voz, assim, que está sendo silenciada, então, a gente teve que voltar para o nosso território sem atendimento. Então com muita, é…. luta que a gente vive hoje que as pessoas estão se ligando mais, né… que o Guarani, por exemplo, o que a Liz falou que tá mais presente na parte social agora, que as pessoas estão se ligando agora em colocar mais pessoas nesses órgãos públicos, assim, por exemplo: fórum, banco, nas previdências, é… por exemplo, nas secretárias, por exemplo, no…no CRAS assim, para atender os indígenas, porque nem todos os indígenas sabem mexer, por exemplo, no computador… nem todos os indígenas têm acesso a internet, nem todos os indígenas têm acesso e facilidade, principalmente nos territórios indígenas que são retomada. Então as coisas ficam mais difíceis e, muitas vezes, os indígenas se sentem realmente com a voz silenciada nesse sentido. Então, eu vou muito pela minha experiência, porque como vim de uma família indígena tradicional, onde eu presenciei vários momentos, assim… de racismo e preconceito e das pessoas, às vezes quando a gente, por exemplo, um dos exemplos também que acontecem quando a gente vai num restaurante, por exemplo, comer uma coisa eu e minha família e a gente começa a dialogar em Guarani, a pessoa que passa ou a pessoa que tá do lado já começa a falar: "E aí? O que vocês tão falando? Tão falando mal da gente?". Aí a gente olhava um para o outro e a gente ria, sem saber como responder, né? Então esse tipo de qualquer forma, as pessoas não conhecem, não sabem e acham que a gente tá falando mal da pessoa, só que a gente na real, o Guarani, ele é falado com… de forma com entonação alta, né? Por exemplo (palavra em Guarani), (palavra em Guarani), entendeu? Parece que você tá falando bravo assim, mas você tá na sua altura. Quem nunca ouviu assim, acha que você tá falando mal da pessoa, ou você tá discutindo e brigando aí. Então isso de qualquer forma é uma forma de silenciamento da mente. Então, a minha experiência na parte de silenciamento também… eu presenciei, eu passei por várias situações assim que eu me senti totalmente diminuída assim sabe, inferior, é… naquela época, mas hoje em dia, eu falo que quando a gente vai a luta e pra gente manter a nossa língua materna a nossa cultura a gente realmente tem que sair do nosso território e quebrar várias barreiras e você, como é que fala?... Tentar buscar um escudo pra você se proteger, porque as pessoas sempre estão aí pra atacar pedras, pra falar… pra te atacar pedras em forma de palavras, as pessoas realmente vão falar, diminuir pra você desistir, mas se você ultrapassar tudo isso, com certeza, o seu resultado lá na frente vai ser um resultado também para as futuras gerações que estão vindo por aí. 


LUIZ: E você Anaranda que detalhou com bastante riqueza tudo o que aconteceu: Você acha que tem algum motivo pra que esse silenciamento ocorra com a língua Guarani, por exemplo? E com a população em geral que fala Guarani que é minoritarizada aqui no estado e, enfim, no país inteiro? Deve ter algum motivo específico? Liz também se quiser responder… é pra todo mundo essa pergunta.


ANARANDÁ: Sim. Responde, Liz, você. Vai. (Risos)


LIZ: Não, eu… eu acho… (Risos) Eu acho que nós temos um processo aí de longa data, é isso em Português, né? De longa data, desde os tempos da colonização mesmo. Então é… se pegarmos nos tempos da colonização a língua Guarani e as línguas indígenas tiveram um certo status somente nas expedições jesuíticas, assim… Que os Jesuítas foram defensores dos indígenas e eles introduziram a escrita, produziram dicionários aí falando de Antonio Luiz de Montoya. Mas quando eles foram… e durante este processo, é… estamos falando do século 16, 17… 18 e 19, 18 na verdade… É… nesse período, as línguas indígenas que eram faladas nas comunidades… alheias às reduções jesuíticas, não tiveram nenhum tipo de tratamento, nenhum interesse por parte dos colonizadores e, mesmo no Paraguai. Nenhum interesse, na língua escrita, o pouco que se escrevia naquela época era na língua Espanhola… era em língua Espanhola.


LIZ: … E quando os jesuítas foram expulsos, os governantes posterioris, inclusive após a Independência, vou tomar como exemplo a do Paraguai, os primeiros governantes não queriam saber de guarani. Uma das políticas do segundo governantes, Carlos Antônio Lopes, foi o de proibir o uso de guarani nas escolas. Por que? Porque isso tinha a ver com uma concepção de que a língua indígena era a língua da barbárie, era a língua de povos incivilizados, temos toda essa questão de preconceito linguístico, que em certa medida ainda respinga nos dias atuais. Então, a língua espanhola era vista como a língua do progresso para esses primeiros governantes. Aí, o guarani, no caso do Paraguai, foi só utilizado em jornais e teve um certo status durante a guerra. Foi em momentos bélicos. Isso se repete na Guerra do Chaco. Então, tiveram um certo status, uma certa tensão com a escrita. Bom, e eu acho que em certa medida, essa ideia ela ainda prevalece. Então, pra quem… Não sei se os colegas estudam análise do discurso e enfim, formações discursivas… Bom, dá pra fazer certas interpretações a partir dessas perspectivas teóricas. E me parece que são ideologias que ainda respingam, que estão presentes ainda.


LUIZ: Você falou que respingam, mas acho que não só respingam, acho que as politicas linguísticas do Brasil são embebidas, de fato, não são só respingos. Do passado colonial, mesmo.


LIZ: Sim.

HENRIQUE: Embebido você está sendo bem eufemista, elas são um afogamento, na verdade. As políticas de silenciamento, aqui no Brasil, desde a época Pombalina, elas se mantém até hoje, por exemplo, na nossa Constituição. 


ANARANDÁ: E ainda, até hoje, segue vários registros em guarani que não são registrada, você não encontra principalmente o dos Kaiowá. A gente tem o guarani nhandeva, mbya e kaiowá, por exemplo, a história que a gente ouve aqui, e assim, eu como educadora e pesquisadora, eu pesquiso muito os ancião, os líderes espirituais que são conhecidos como ñanderu e ñandesy são aquelas mulheres e homens que têm oitenta,  noventa anos, e eles falam que o guarani, por exemplo, é pra gente aqui no Brasil… Viu, Liz? Você é do Paraguai. Haha (risos). É… Aqui, a gente sabe da onde surgiu a palavra “guarani”, então pra gente, é assim: guarani, gua’a veio de arara, rani em kaiowá é perigo. Por exemplo, eu vou ser picada por alguma coisa na minha mão, eu vou falar: Machu, machu! Rani, machu, rani!, kaiowá. Aí, o que tá falando? Ah, perigo, aqui, aconteceu alguma coisa que eu sofri. O guarani vem então de gua’a, arara e rani, perigo. O que seria isso? Os indígenas antigamente, nessas migrações, eles tiveram as pessoas que ficavam tipo de mirante nas árvores, para cuidar o território ali, onde tinha crianças, mulheres, porque aqui no Brasil a gente tinha muita onça, porquinho do mato que invadia o território, que as vezes atacava a aldeia mesmo sem dó. Então, eles sempre colocavam pessoas pra ficar de tocaia, no guarani a gente fala manguea, para cuidar ali do território. Então, nisso, os indígenas ensinavam os passáros, que seria o papagaio, a arara, as aves para sobrevoar o território, e quando tivesse um perigo, eles ensinavam o código que era rani, que era que o perigo estava se aproximando. Então, a arara sobrevoava o território, e quando batia as asas e falava: “Rani! Rani”, quando era assim, era um sinal para o povo se prepara porque ali tinha algum perigo se aproximando. E além do indígena que estava ali de tocaia, já fazer o som do pássaro, dando sinal de que alguma coisa estava se aproximando lá. Nessas história também, a gente tem que assim os indígenas foram se espalhando, porque os capitões do campo, na invasão, caçavam os indígenas. Então, eles foram se expandindo, eles foram migrando de território para território, até chegar aqui, por exemplo, no estado de Mato Grosso do Sul. Assim, foi dividido o guarani nhandeva, guarani mbya, e então os kaiowá. Então, a história que chega para gente é essa que eu ‘tô falando, que muitas vezes não são registradas, não são publicadas. Eu escrevi no meu livro, que eu vou lançar no ano que vem se Deus quiser, eu sei que vai dar tudo certo, ‘tá escrito, eu escrevo sobre isso, que são relatos do nosso ñaneramõi, que são os nossos ancião. Que são eles que falam a história que foi passada. Então, hoje em dia, a gente tem a tecnologia, graças a Deus que a gente ‘tá conseguindo gravar, a gente ‘tá conseguindo filmar, a gente ‘tá conseguindo fazer um documentário, para que esse apagamento histórico, para que esses ensinamentos não estejam totalmente esquecidos, para que as futuras gerações possam olhar e falar: “Olha, a história é isso”. Então, chega, como nossa fala guarani ela vai muito oralmente em cada aldeia, em cada cidade, em cada território, não importa onde você estiver, chega de uma maneira, as vezes, não exatamente como ela foi contada desde o início, ela vai sempre mudando a história, como ela não foi registrada antes. Então ela vai perdendo um pouco até as pessoas chegarem e registrarem, como as pessoas vêem hoje em dia no Google. Mas, as vezes a história é outra coisa, não tem nada a ver com o que tá lá. Mas, alguém registrou. Então tem muito isso também, que eu queria colocar. 


LUIZ: Muitos desses desvios, na história, são desvios com viés bastante colonialista. E que acabam, muitas vezes, subjugando e colaborando com o silenciamento das línguas indígenas, das línguas autóctones do país. Não só do país, mas como da América Latina como um todo, no geral. Bom, a gente sabe que vocês duas são bem ativas nas redes sociais, e se tratando de silenciamento, geralmente tem esse dilema de quem deveria realmente, não trazendo essa divisão de preto no branco, mas como seria o papel de cada um, dos especialistas da linguagem, e do povo também, no combate ao silenciamento linguístico? Como vocês vêem também o papel de cada um? 


LIZ: A imagem que você tem, por exemplo, da língua inglesa, difere da imagem que você tem de uma língua indígena. A valorização. E mesmo se comparar também entre o inglês e o espanhol, a valorização, a percepção muda entre uma língua e outra. Eu moro numa comunidade de colonização alemã, aqui em Ivoti, e os migrantes relatam que passaram pelo mesmo processo de silenciamento, de preconceito de sua língua, no caso o hunsrickisch, e também relatam a mesma situação nas escolas, dizendo que: “Ah, minha professora dizia que falar alemão atrapalha aprender português”. Então, temos históricamente casos de falantes que eram monolíngues, em hunsrickisch, mas, que quando foram frequentar as escolas, tiveram que aprender o português. E claro, é óbvio que tiveram dificuldades, quem não aprendendo uma segunda língua, ou terceira língua? E, relatam a mesma história, então me parece que talvez ali tenha uma relação com a questão social. Ah, o colono, o alemão batata, existem todas esses preconceitos que esses falantes também relatam aqui na comunidade onde eu moro. E no Paraguai ouvimos a mesma situação, e esses discursos persistem. E acho que respondendo um pouco da pergunta que vocês fizeram, qual o papel da universidade, qual o papel dos acadêmicos, é formar professores com uma boa percepção linguística e valorização da diversidade, da pluralidade linguística também, precisamos disso para que os professores presentes e futuros não reproduzam esse tipo de preconceito que não tem embasamento científico. 


ANARANDÁ: É… esse tempo atrás, antes de eu criar um canal no YouTube, eu fiz meu plano de aula, montei e enviava para vários lugares onde… Aqui, a gente tem muitas pessoas que trabalham na área da educação indígena, saúde indígena, que não são indígena. Aí, eu enviava para essas pessoas o meu plano de aula, as pessoas rejeitavam, e aí eu pensei: Quer saber? Não vão ser eles que vão me calar, eu vou criar um canal no YouTube, onde eu vou falar e abordar os temas que é a minha língua materna. Logo de cara, eu criei o canal, em um dia eu vi doze inscritos, no outro dia eu vi quinze, daí falei: Opa! A galera está gostando. Hoje em dia, eu vejo que o canal está crescendo, onde eu abordo sobre os temas, que é guarani como língua materna. Então, até as pessoas que recusaram meu plano de aula no passado, viu que essa língua se espalhou, não só aqui no Brasil, mas em vários lugares do mundo também.


HENRIQUE: E agora, já que a gente está falando sobre as pessoas terem acesso para aprender a língua materna, por que vocês acham que as pessoas se interessam por aprender o guarani? Vocês conseguem falar um pouco sobre o público de vocês nas redes sociais? Porque acredito serem públicos bem diferentes.


LIZ: Sim, eu acredito que o público do Dicas de Guarani é bem diferente do público que a Anarandá atende. O Dicas de Guarani começou pensando no brasileiro que vai para o Paraguai para estudar, hoje em dia, medicina e se encontra com a cadeira de guarani, precisa entender guarani. Pensamos também no brasileiro que mora no paraguai e que não tem, não consegue aprender o guarani porque não existe um curso destinado à brasileiros. Nós não temos ainda um curso no Paraguai destinado a essa comunidade. E esse problema de aprendizagem do guarani de parte do brasileiro vem desde a primeiras migrações de brasileiros para o Paraguai, falo da década de setenta, oitenta. Existe até teses de dissertação que abordam essa questão da migração brasileira para o Paraguai e os problemas de aprendizagem do guarani como segunda língua, ou terceira, porque também temos brasileiros descendentes de alemães que foram para lá, já tendo o português como segunda língua. E aí, o público foi aumentando. O brasileiro que se entende, que descobre sua ancestralidade indígena e quer aprender essa língua, temos também como público os falantes de comunidades indígenas Kaiowá, por exemplo, que as vezes reclamam da didática adotada nas escolas deles e acabam dizendo:”Ah, sua explicação clareou, eu consegui entender”. Temos também pesquisadores que seguem a página, linguistas que seguem a página. E ali temos uma parcela de pessoas curiosas, amantes apaixonadas por línguas de um modo geral, sempre vêm: “Ah, agora estou aprendendo o mandarim! Mas, gostaria de aprender o guarani. E vejo que o guarani e o mandarim se parecem em tais e tais aspectos”. Tem esse público também. É bem diverso, e eu acho muito legal. 


HENRIQUE: A gente faz parte desse público! Hahaha (risos).


LIZ: E estou me esquecendo dos paraguaios, muitos paraguaios vêm me dizer: “Olha, a explicação que está dando é muito boa, é uma didática boa, nunca me ensinaram dessa forma na escola”. Então, o que eu vejo é assim, não estou pesquisando esse assunto, quem sabe no futuro eu pesquise, mas o que eu vejo é, ao olhar os materias didáticos do Paraguai é que alguns deles focam muito no ensino de neologismos, e fica por aí. Então, os estudantes reclamam dessa linguagem técnica, muitos dizem que é uma língua artificial e acaba pecando na riqueza que reside na explicação morfo-sintática, eu sou apaixonada por isso. Porque o guarani é uma língua muito diferente do espanhol, uma língua aglutinante, e o falante sabe disso. Tanto que quando você pergunta uma palavra ao falante de guarani: “Ah, o que significa ka’akupe?” “Ah, ka’a é erva e kupe é atrás, então, atrás da erva. 


ANARANDÁ: Eu comecei a divulgar na minha rede o guarani, antes da pandemia. Só que depois de um seis meses ou mais veio a pandemia, ou seja na pandemia que começaram a me ver mais na telinha, foi na pandemia que eu conhecia o canal da Liz, e queria dizer que sou muito fã dela. 


LIZ:  Ainda bem! Hahaha (risos). Também somos seus fãs, minha cunhada que mora em Mato Grosso do Sul também é sua fã.


ANARANDÁ: E.


LIZ: Toda vez que sai uma notícia ela me manda.


ANARANDÁ: Olha, e na pandemia quando ninguém podia sair e que tudo aconteceu abria live.Deu um retorno muito grande, né? Depois dessa pandemia, né? Que passou e a gente está aqui falando e isso deu um resultado muito grande assim. Até porque quando eu vi as pessoas subiram, né? A minha rede subiram, eu falei, nossa, até onde a gente chegou, sabe, aí eu vejo muito legal na força que eu ganhei tanto aqui no Brasil, tanto no Paraguai. E no Paraguai, as pessoas gostam muito do meu conteúdo. Às vezes eu publico meme, às vezes eu vou lá, trago frases cotidianas, às vezes vou lá. Trago um conselho em Guarani ou uma brincadeira? Então isso vai viralizando em vários lugares do mundo onde essa língua está presente, né? Que não, não é só no Brasil isso ter me ajudado muito. AA sair também de vários problemas assim, pessoais assim. O racismo, o preconceito que eu sofria, né? Hoje em dia. Isso já não me atinge mais, né? Eu me tornei uma pessoa muito forte e acabou sendo um escudo, né? Para mim, para me proteger. Mas antes disso, eu passei por várias coisas, né? As pestinhas hater que mandava mesmo é uma. É uma palavras assim que machucava assim, mas depois eu falei, não vamos deixar ele falar, porque quanto mais eles falam, mais engajamento. Então vamos deixar falar.

LIZ: Exato.


HENRIQUE: E como a gente já falou a respeito sobre como usar essas ferramentas, as redes sociais, a favor da divulgação da língua e tudo. Agora, uma pergunta que de novo já vai na visão pessoal  de vocês, como vocês percebem a visão dos outros sobre a língua Guarani? Se elas atribuem um valor positivo negativo? Como vocês conseguem ver as pessoas. Tem essa percepção da língua?


LIZ: Nas redes sociais


HENRIQUE: isso. De modo geral.


LIZ: Ah, eu acho que estamos num tempo muito bom assim. Existe um despertar com relação à diversidade e desde a página eu percebo que os brasileiros estão cada vez mais conscientes com relação a essa diversidade linguística que. Que tem aqui no Brasil, então acho que é muito positiva. De um modo geral, me parece muito positiva, sim. De um modo geral.


ANARANDÁ: Sim, é para mim também, até porque ganhou uma força, né? Como eu falei sobre o silenciamento e os. Aqui tem bastante indígena que não falava mais do Guarani, só falava no português. E a partir do momento em que é essas pessoas, né? Esses adolescentes chegaram na universidade. Daí que eles se depararam com a realidade. Assim, de que, como, como é importante você levar esse idioma junto com você, né? Que carrega a sua história, a sua origem. Que esses acadêmicos começaram a ver a minha rede, por exemplo, e deu um retorno muito grande e eles começaram a buscar de novo para aprender aquilo que foi tirado deles. Não porque eles querem, mas sim pelo preconceito, pelo silenciamento que sofreram, pelas violações de direitos que sofreram também como indígena. Eles viram que. Várias pessoas, né? Ou seja, não, eles não estão sozinhos, existe várias pessoas que falam esse idioma em vários lugares. Está, então você pode ser indígena, né? Você pode estudar, ser, doutora, mestre, mas você nunca pode deixar de ser indígena pela sua raiz. Vem dali. Ou seja, a sua língua materna tá com você, né? Que nem o que eu falo sempre isso deu muita positividade. Assim, um retorno positivo para muitas pessoas, para aquela criança que muitas vezes Ah, mãe, eu vou na escola, eu estou estudando, por exemplo, a criança estuda numa escola que não é indígena. Ah, mãe, eu tenho vergonha de falar Guarani lá. Então a criança vê o vídeo e fala, não, essa pessoa, olha só que linda. A pessoa tá aqui falando meu idioma e lá na escola eu tô com vergonha, mas porque que eu vou ter vergonha de falar da da minha própria? Então você, de qualquer forma, você cria uma peça e encorajamento para essas crianças. Sem que eles percebam, né? Mas com certeza, na cabeça deles eles falam, nossa, é tão lindo falar, o Guarani, sabe? Então ela traz muito retorno muito, muito grande, né? Até para as pessoas, que são os indígenas que deixaram de falar o seu idioma hoje em dia estão procurando conteúdo para aprender, é vários. Depois a os acadêmicos que me procuraram, até indiquei a página da Liz também, que é uma página onde ela traz vários. Por exemplo, às vezes eu falo no português. Mesclado Guarani e português mesclado. Mas daí eu vou, vejo Guarani com espanhol, daí eu começo a ver né, que eu. Eu como português e ela espanhol e iraniana, aí a gente.


LIZ: Querida, precisamos fazer um trabalho juntas, viu?

 

ANARANDÁ: Vamos sim.


LIZ:  Eu tenho muita vontade de ir ao Mato Grosso do Sul, em que cidade vocês são?


ANARANDÁ: Dourados.

LIZ: Meu cunhado mora ai.


HENRIQUE: Eu também estou indo para Dourados.


LUIZ: Encontro do trio.


TODOS: Hahaha (risos).


LIZ: Quando for a Dourados eu vou te avisar, quem sabe mais adiante podemos fazer um trabalho juntas.


ANARANDÁ: Promessa é dívida.


LUIZ: Está registrado no Língua Cast. Vocês duas vão fazer trabalhos juntas. 


LIZ: Vamos sim.


LUIZ: Conversamos muito sobre silenciamento, vai muito além da questão de língua, entendemos que língua tem a ver com como se bota no mundo, como você se enxerga, como constitui você como sujeito e pessoa. E aqui vai a última pergunta, quanto da sua identidade como pessoa sujeito no mundo mesmo tem relação com a língua que vocês falam? E se vocês conseguem se ver sem elas?


LIZ: Eu acho que não seria muito difícil sem elas, como Liz sem a língua Guarani por exemplo, toda minha infância, as história da minha infância envolvem o guarani, minhas lembranças, minha relação com meus avós maternos tem a ver com a língua guarani. Toda essa questão sentimental que tem a ver com minha infância tem a ver com o guarani, não existiria sem o guarani. É uma língua maravilhosa, que tem um modo de ver, que nos paraguaios nos antecede, que faz parte da nossa identidade, de quem somos. Entao, eu nao conseguiria viver sem o guarani.

ANARANDÁ: . É uma pergunta difícil. Né? Já está, já está quase chorando quando ali estava falando. As meninas querem. Querem mexer com a gente hoje, Hein, menino? 


LIZ: Realmente. Eu estava preparada para essa pergunta.


ANARANDÁ: Eu fiquei assim é o meu olhinho, de lagriminha aqui. É, eu também vou muito pela resposta da LIZ, né? Eu acho assim que eu não existiria sem esse idioma. Eu acho que não haveria vida, né? Ou seja, eu existiria mais o sentimento, né? A aldeia que vive o dente vive dentro de mim. É? Seria. Um apagamento histórico, digamos assim, eu teria uma pessoa sem brilho. Eu caminharia assim, raras, sem cores, lugares onde. É? Eu veria, né? Suas cores cinzas sem ser um lugar de brilho assim, sabe um lugar de Alegria? Então seria uma pessoa. Invisível assim, digamos eu, não teria nenhuma. É, me veria uma pessoa assim sem coração, digamos.


LIZ: Ai que coração, que profundo é forte, né?


ANARANDÁ: Nunca mais faz essa pergunta pra ninguém.



TODOS: Hahaha (risos).


JULIA BEATRIZ: E a palavra do dia é: Segundo o Dicionário online de Português, a palavra estrépito significa: fragor causado pelo excesso de vozes que se propagam ao mesmo tempo. Ruído forte, estrondo, barulho intenso. Barulho causado pelo contato dos cascos de certos animais quando estes atingem o solo em alta velocidade. Rumor, agitação ou tumulto.


ANA KARLA: Este é o segundo ano do LinguasCast e nele você pode acompanhar três episódios da nossa temporada especial. E se você já se considera um linguarudo, você pode escutar a temporada anterior no Spotify, ou no Youtube, pelo canal LínguasCast. E não deixe de nos seguir no Instagram @linguas.cast. A transcrição deste ep pode ser acessada em linguascast.blogspot.com.


Postagens mais visitadas deste blog

Transcrição T0 Episódio 3 - Há algo além da Libras?

Transcrição T0 Episódio 2 - E a sua língua, é real E oficial?