Transcrição T2 Episódio 02 - Linguarudes, que som é esse?

CONVIDADOS: eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis, eles tagarelarão. (solicitar para gravar e encaminhar para os hosts)


HENRIQUE: Hey, everybody! Este é o segundo episódio da segunda temporada do LínguasCast, o seu podcast sobre linguagens, identidades e otras cositas más. O título do episódio de hoje é: “Linguarudes, que som é esse?” Let’s que vámonos!


LETÍCIA: — Olá linguarudos, linguarudas e linguarudes! Sejam bienvenidos ao primeiro episódio da segunda temporada do LínguasCast! Eu sou a Letícia.


LUCAS: — Y yo soy Lucas, com C por favor. Hello, linguarudes! Boas vindas ao segundo episódio da nossa segunda temporada.


LETÍCIA: — O tema deste episódio é “a linguagem musical”.


LUCAS: — E para falar sobre isso, nós convidamos Vinícius Rocha, que é brincante, arte-educador e trabalha com musicalização para bebês e teatro, e William Teixeira da Silva, violoncelista, pesquisador e professor da UFMS no curso de licenciatura em música e no programa de pós-graduação em Estudos de Linguagens.

LETÍCIA: — Então gente, nós agradecemos imensamente o fato de vocês terem aceitado o convite da equipe do LínguasCast, e sejam bem-vindos!


WILLIAM: — Obrigado Letícia! Obrigado pessoal do podcast! Uma honra, um prazer estar aqui com vocês, muito ansioso pra gente poder conversar um pouco aqui nesse momento.


VINÍCIUS: — Muito obrigado, agradeço também ao convite, fico feliz de estar aqui com vocês, tá? E… é isso, vamos lá! [risadas]


LETÍCIA: — Bom, então a gente começa com a nossa primeira pergunta, assim, né… e pra iniciar essa conversa, na verdade é um papo, né?, e situar os nossos ouvintes, vocês poderiam comentar sobre em que contexto vocês trabalham com música, nesse momento?


WILLIAM: — Bom, é… como já foi anunciado anteriormente, eu sou violoncelista, toco violoncelo há mais de 20 anos já, e, neste momento, eu creio que a maior parte do meu tempo com o instrumento acaba de alguma forma estando ligado à música contemporânea, isso significa que, como pesquisador, como professor universitário, eu tô bem ligado a um tipo de música interessado, não apenas em dialogar com as práticas já existentes, mas também, de alguma forma, investigar novas formas de se fazer música e é nisso que consiste mais ou menos essa forma de fazer música, que está mais ligado à universidade, então, além da questão meramente, digamos do todo lazer, o entretenimento associado à música, a gente tá interessado também em uma construção intelectual, talvez alguma ligação desse fazer musical, com questões de pesquisa um pouco mais amplas… então, nesse sentido, eu acho que o fazer musical é semelhante, ou seja, a gente tá buscando fazer ali uma música que afete outras pessoas de alguma, mas talvez a maneira de fazer isso mude um pouco, ou seja, que [o] tipo de música a gente tá fazendo nem sempre é o tipo de música mais esperado, porque justamente essa é a intenção: que a gente faça algo distinto do que já existe, e nesse sentido então a universidade se torna um local de inovação também pras artes, também pra música.


LETÍCIA: — Ai que legal!, obrigada, William... Vini, [e] você?


VINÍCIUS: — É… eu sou, ainda, aluno do curso de música, né, mas já estou no quarto ano em que eu também trabalho com educação musical, e eu tive esse encontro, e também é… quando entrei pra faculdade eu também comecei a fazer teatro, né, então esse misto de coisas que comecei a fazer me levaram à casa de ensaio, que me levaram ao instituto brincante, então… é só pra tá um pouco de onde que eu estou no momento, né, que eu sou um educador musical e que me encontrei com essa linguagem também do brincar, né, então nas minhas aulas… hoje que sou quase [há] 4 anos professor de musicalização para bebês e crianças pequenas, trabalho com a primeiríssima infância e levo também essa linguagem do brincar para as aulas, né, contação narrativa, brincadeiras da cultura popular, né, então é mais ou menos nesse contexto que eu me encontro no momento, e também no meio do teatro, né, juntando isso eu também me deparei com a contação de histórias né, então mais ou menos nesse contexto que eu tô, né.


LETÍCIA: — Obrigada, Vini. 


LUCAS: — Certo, já aproveitando então que a gente tá falando sobre a educação musical, queria saber dos dois, né?, começar acho que com o Vinícius, que já tá no embalo, mas depois eu queria saber do William também, é… a gente queria saber: qual que é a trajetória de vocês com a música? Vocês tiveram, por exemplo, musicalização na escola? Como foi esse contato inicial de vocês?


VINÍCIUS: — Olha… o meu o meu início… eu não tive educação musical na escola, não. Eu tive um amigo que tocava violão e cantava músicas gospel, inclusive, né, ele era evangélico e eu na época também, e aí eu gostava de cantar, começava a cantar com ele e aprendi a tocar uns acordes em violão com ele, né, e isso sempre foi um desafio para mim. Aprendi a tocar violão, né, fazer mais coisas e tal, eu não tinha… não tinha aula, mas lá, pra quando… depois de eu fazer duas faculdades, começar duas faculdades e parar, né, e que, ainda tava tentando entender o que eu queria, que eu decidi fazer música. Aí eu entrei pro coral, né, e me desafiei a entrar pro curso de música, então, essa minha trajetória, eu vejo que tem muita relação com que eu faço hoje, porque eu gosto de investigar as formas que as pessoas aprendem, sabe?, desde quando eu entrei, quando eu comecei dar aula, no início numa escola de música de violão, de canto e tal, eu, não só buscava aplicar métodos, como eu buscava entender aquela pessoa em si, como que ela aprendia, porque eu tive essa dificuldade, sabe?, eu sempre, quando me deparava com o ensino, era uma coisa que não entrava muito na minha cabeça, quando eu comecei a faculdade de música, eu me deparei com várias outras formas de ensinar música, que isso me me virou uma chave, assim, né?, e principalmente quando eu me encontrei com o Instituto brincante, o brincar, a linguagem do Brincar, né, é que eu comecei a atribuir isso muito à minha aula, né, é brincando que a gente fica assim… é desenvolvendo algum tipo de jogo, de linguagem, e que você se divirta fazendo aquilo. É o que eu consigo, que eu mais ou menos consigo, e procuro trazer pras minhas aulas, pra minha atuação hoje em dia.


LETÍCIA: — E você, William?


WILLIAM: — Ah, bom… eu também… eu sou cristão, sou evangélico, e como caso do Vinícius, como boa parte, da maior parte dos nossos alunos também comecei na igreja. Acho que eu tinha 6 anos quando meu irmão mais velho começou a aprender violão, e aí eu pegava um pouco e tentava tocar também, então foi mais ou menos a época em que eu comecei a querer tocar, ganhei um violãozinho quando eu tinha uns seis anos também, porque eu pegava o dele e…, mas obviamente aquela coisa bem popular, assim… bem informal, sem fazer aula, nada, e foi assim por muitos anos na minha infância, apenas tocando alguns acordes, na minha época, né, já não sou mais tão novo, a gente não tinha internet, então a gente comprava as revistinhas na banca para aprender tocar as as músicas, e isso foi [assim por] um bom tempo, aí assim a gente vai tendo alguns bons encontros ao longo da vida, aí… eu lembro mais ou menos dessa época, eu gostava. A gente… eu tava na casa do meu irmão jogando futebol de botão com os amigos, assim, e aí ele colocou para tocar um disco, do Paralamas do Sucesso, e aí eu me lembro [que] foi a primeira vez na vida, assim, que eu ouvi música, fiz “nossa… isso é música”, porque obviamente que todo mundo em casa de, alguma forma, tem uma vivência musical que acaba sendo tão natural que você nem para pra pensar que aquilo em si é uma coisa, [que] aquilo é parte da vivência doméstica, mas ali foi a primeira ocasião que alguém falou “oh, vamos parar para ouvir isso”, a gente parou, ouviu e eu falei “uau tem alguma coisa diferente acontecendo aqui”. Eu me lembro que isso me motivou muito a querer aprender mais, eu tinha ali 7 anos, mais ou menos, e pouco tempo depois eu comecei aquela coisa de criança: tambor com lata, querer tocar bateria; e aí, na igreja, eu comecei a querer tocar bateria e, graças a Deus, deu, teve uma situação em que um seminarista da igreja era professor de bateria no Conservatório de Tatuí, e ele me deu algumas aulas, assim, e nessa época eu comecei a ler partitura, eu tinha uns 9, 10 anos, e aí estudei bastante bateria, foi o instrumento que eu primeiro me dediquei mais a estudar, só que aí eu acompanhava, de novo, né, não tinha nenhum vínculo com com escolas conservatórios, sou do interior de São Paulo, então não tinha nada muito organizado nesse sentido, e eu eu lembro de ler uma entrevista de um de um baterista, chamado Duduca da Fonseca, baterista do jazz, e ele falar “olha… pra gente tocar bateria, não adianta entender o que a gente tem que fazer ritmicamente, tem que entender a harmonia, tem que entender toda a construção musical”, e aí isso me fez [pensar]: “olha, então não adianta”, eu só eu chegava na escola e usava bateria até à noite, usava 10 horas de bateria, quando tinha 10 anos de idade, então ter que aprender música, teoria, né, só que assim… não tinha escola, não tinha recursos financeiros para para pagar aula nada disso, e aí, na minha cidade tinha justamente um projeto social, como muitos que existem, de ensino coletivo de cordas. Então eu entrei nesse projeto da orquestra sinfônica de Rio Claro, só porque eu queria aprender tocar bateria melhor, entender um pouco mais de teoria musical. Ali eu tinha 13 anos quando isso aconteceu, só que, assim como eu já estudava 10 horas por dia, de bateria, eu comecei fazer essa mesma coisa com o violoncelo, então o currículo, que era para cumprir em 2 anos, eu cumpri em 6 meses, e aí então, depois de 6 meses, quando eu tinha 14 anos, eu comecei a dar aula nessa escola, então por isso que eu, até hoje, adoro dar aula, porque eu sempre dei aula, desde seis meses tocando esse instrumento eu dou aula, e de novo, tive um professor, que é o Francisco Paes, lá em Rio Claro, que foi um grande mestre e eu, obviamente, acredito como professor que, de todos os pilares da educação, o professor é o mais significativo, e, a partir desse encontro com grandes mestres que a gente se motiva a ir adiante, seja qual for saber, e depois do Chico, lá em Rio Claro fui tendo, graças a Deus, outros bons encontros, que foram me levando adiante, até enfim fazer a graduação em música lá na Unesp, em São Paulo, mas daí, né, ainda na época do vestibular, aquela coisa de adolescente, já tava na dúvida se era bateria ou violoncelo e tal, mas aí, digamos que em casa eu fui “motivado” ao violoncelo, porque era uma via um pouco mais formal pra se estabelecer profissionalmente e isso… enfim, foi me levando aos às outras portas que se abriram nesse sentido mas eu acho que é normal assim é um é um é um relato bastante comum, porque a gente sempre acaba recebendo alunos que começam na igreja, passam por projetos sociais… e foi basicamente esse o meu começo também. E tudo depende acho com quanto a gente tá disposto a se dedicar em cada situação dessas também.


LETÍCIA: — Uhum. Obrigada gente. Oh! E já que o tema do episódio é a linguagem musical, a gente queria saber o que configura a música como linguagem para vocês.


WILLIAM: — Essa é uma é uma pergunta– não sei se você sabe que ela é tão difícil, mas ela é muito difícil. E eu digo que ela é difícil porque, para muitos – na verdade – estudiosos desse assunto, a música não é uma linguagem. Então essa não é uma questão tão pacífica, um ponto tão pacífico quant a gente acredita. Mas isso por várias razões: a primeira razão é porque talvez o fazer musical, como qualquer arte em alguma medida, mas o fazer musical historicamente tem sido mais extremo nesse nesse assunto. Que é o fato de ele não necessitar de um código. Então, obviamente, a prática musical pode construir códigos, ela tem essa capacidade, mas ela não depende desses códigos para expressar nada. Ou seja, eh eh é sempre como a gente falar: olha você veja Bach. Bach escrevia música para um contexto específico de uma comunidade protestante na Alemanha no século XVIII, falando e lidando com as questões específicas, então é claro que naquele momento, com aquela comunidade, ele tinha um código muito claro sobre o que ele tava querendo retratar o que ele tava querendo comunicar com aquela música No entanto, passados 300 anos e nós, no Brasil, a gente continua ouvindo Bach sem, na maior parte das vezes, fazer ideia de que código é esse, o que ele estava de fato comunicando, do ponto de vista teológico-religioso, e mesmo sem saber nada disso a gente continua sendo extremamente afetados por essa música. Ou seja, a música pode constituir códigos; ela não depende desses códigos para se efetivar enquanto percepção artística. Então, eu acho que tudo depende, no final das contas, de como a gente define linguagem. Eu acho que essa questão não mostra o limite da música ser ou não ser linguagem. Eu acho que, pelo contrário, ela expande a nossa própria compreensão do que é linguagem, e obviamente a gente tá aqui num momento mais informal e rápido mas eu posso colocar rapidamente que a minha visão de linguagem é muito bakhtiniana, e nesse sentido eu acredito que linguagem seja qualquer meio que nos nos possibilite o diálogo, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, qualquer meio que não apenas estabeleça um diálogo entre pessoas, mas que seja capaz de transformar essas pessoas. Então, nesse sentido que eu não tenho problema nenhum em considerar a música como linguagem, independentemente da sua estrutura ser ou não um código, porque de fato a música ela talvez de forma mais clara do que qualquer outra linguagem artística, ela tem essa capacidade de mudar nossa forma de pensar. E no final das contas é isso que a gente espera quando a gente usa a linguagem espera que algo que não existe na nossa relação com o outro passe a existir. E isso eu acho que então inclusive ajuda a gente a compreender, às vezes para além dos limites da palavra, para além dos limites da verbalização, o que nós fazemos enquanto utilizamos linguagem, que por vezes é até mais importante do que a língua em si.


LETÍCIA: — Nossa, muito, muito legal essa resposta. Vini, eu já te vi aí fazendo assim, concordando, concordando, tem alguma coisa a acrescentar, ou a discordar, porque eu vi tu concordando o tempo todo…  então ,por isso que, como a pergunta foi feita pros dois né…


VINÍCIUS: — Não, com certeza. E assim, o William vai trazer essa visão mais profunda, filosófica, toda… né? Quer dizer… eu, enquanto ele falava, fiquei pensando na minha prática né? Eu, desse pouco tempo, mas já é bastante tempo, que eu tô dando aula… Tem uns quatro anos que eu comecei… eu passei– eu tive algumas experiências, né. Eu trabalhei em escola de música, dando – como eu falei, né – dando aula de canto, aula de violão… Eu trabalhei… Eu tive também num projeto chamado DelirARTE, onde eu levava música também, num projeto chamado Moinho de Vento, que pessoas com condições psicológicas, né, diversas, e… e aí eu levava. É, uma vez na semana a gente levava né. Então, tipo assim: por que é que eu tô citando todas elas? O que eu consigo  me lembrar de tudo isso– de toda essa experiência que eu tive… é como, pensando na expressão, né, dessas– de como essas pessoas se expressam através da música, né, então, tipo assim, que o William pontuou, né? Então… nesse projeto do DelirARTE era muito importante esse momento da… da… que a gente levava música, também teatro, é… porque é como como essas pessoas se sentiam importantes de alguma forma, se sentiam mais felizes, né, ou conseguiam expressar tristezas também, ou conseguiam expressar várias outras– saudade, né, então não só ali como lá no início quando eu dava aula na escola de música, pegava aluno de canto, de violão, que primeiro a gente precisa ter uma relação com o aluno, né? Entender o que é que ele quer cantar, o que é que ele quer. E aí eu fico só pensando, fico pensando nisso, né? O que é que essas pessoas queriam expressar com aquelas músicas que elas escolhiam, o que é que elas queriam aprender né então é isso que, enfim, é um pouco que eu queria acrescentar.


LUCAS: — Massa, massa.


LETÍCIA: — Aham.


LUCAS: — É… e ainda nessa… nesse âmbito, né, nesse contexto de… como é o seu trabalho atualmente, né, você diz que trabalha com musicalização de bebês e crianças, né, com a primeiríssima infância. Bom esperamos, né imaginamos, é o esperado que o objetivo não seja que essas pessoas da primeiríssima infância aprendam a tocar algum instrumento diretamente, né? É… então queria saber qual que é o objetivo, ou quais seriam, né, os objetivos, da musicalização para esse público.


VINÍCIUS: — Exatamente, não é, não é o objetivo que as crianças pequenas aprendam da forma como a gente entende, né, o aprender música, né, que é algo sistematizado e tal, e não, experienciem isso e vivenciem a música, né? É, então o objetivo é levar música de forma leve, lúdica, por através de uma condução narrativa, de um sentido né, uma condução narrativa que atribui um sentido àquelas músicas aquelas atividades que estão sendo levadas e… justamente, é estimular que todos ali, bebês e acompanhantes, brinquem, se expressem, cantem, pra que dessa forma, brincando, eles possam se desenvolver, né, eles possam se desenvolver de forma mais… mais leve, sabe? Então, não é– o objetivo não é que eles aprendam sistematicamente, mas que eles toquem, que eles vivenciem isso, que eles peguem instrumento, que eles batam, que eles toquem, né? Levo nas aulas, tem vários instrumentos, instrumentos diversos, né pandeirinhos, chocalhos, né? Eles vão pegar o chocalho e bater no pandeiro, no tambor, e esse é o objetivo, né? Que eles sintam isso no corpo, que eles sejam estimulados a… né então, da mesma forma, quando eu vou começar um grupo novo, por exemplo, né, o objetivo principal é criar uma relação, né, com com as crianças, principalmente também, não menos importante com os acompanhantes, com as mães, as babás, né, e pra que esse esse meio fique cada vez mais propício, né? Que estimule cada vez mais esse brincar livre, né, se expressar através de música, de brincadeiras, livremente.


LETÍCIA: — E, pensando ainda nessa nessa pergunta que o Lucas te fez, né, quais seriam as possibilidades de iniciar crianças surdas na música?


VINÍCIUS: — Olha, eu ainda não pensei nisso, sabe? Mas… é, não tive essa experiência ainda. Mas eu acredito que todas, sabe, porque como é para criar esse ambiente, não se pensa muito nas condições né, mas da forma que nós vamos ter que “se” adaptar a isso né, no caso eu, o grupo em si, e criar essas condições para que ela também possa, da forma dela, no tempo dela, se expressar de alguma forma, eu acredito que por vibrações, né? Por, né, pelo lúdico, pela visão, então o que mais que ela vai poder trazer para para poder se expressar ali né, poder se expressar.


LUCAS: — Certo ainda só mantendo ainda nesse… nesse contexto, a gente sabe, né, que na musicalização infantil você utiliza linguagens além da música em si, dos sons, né? Por exemplo, a linguagem visual, a expressão corporal, a contação de histórias… e, pensando nisso, a gente queria saber qual é a importância dessas outras linguagens, usando bem com cautela a palavra “outras” linguagens, pra essa para esse trabalho de musicalização infantil? Queria saber qual que é a importância, e como funciona a importância dessas outras linguagens.


VINÍCIUS: — É… eu utilizo mais… a que eu utilizo mais é a narrativa, né? Então, eu trabalho com uma condução narrativa que atribui sentido, que liga uma música a outra, que cria uma história, né? Então… que criam esse universo lúdico pra que isso possa fazer sentido pras crianças, também pros adultos, né? Pras crianças de ontem, de hoje e de amanhã. É… então, eu acredito que é muito importante, assim. Com a Mariana a gente teve aulas também, tem uma outra, é, metodologia do Gordon, né? Que eu não uso muito, mas a gente teve uma experiência que é só cantado, né? É todo cantado. É, e assim, tanto eu quanto ela tivemos uma certa dificuldade porque pra nós é muito importante poder falar, né, poder trazer histórias, poder… né… narrar esse caminho por entre as canções e as brincadeiras, é… durante a aula, porque tanto para eu conseguir né, que é a forma como eu aprendi, e também pra criar esse… é… pra poder criar esse sentido, mesmo né, e ter essa condução. Eu uso menos, mas uso também objetos. Eu procuro usar mais objetos, por exemplo eu uso colheres, eu uso lenço, coisas que estimulam mais a criatividade, a imaginação. É um lenço que vira uma folhinha de coqueiro, que é vento. Então, a colher, que vira o pirata, que vira... Então, eu gosto desses objetos do dia a dia que se transformam, isso é muito importante pra estimular porque esse universo da imaginação é fértil. É interessante de estimular. E… acho que é isso.


LETÍCIA: — Bom, agora, William. A gente viu, nossa equipe andou pesquisando e viu que você tem um projeto de extensão que trabalha musicalidades indígenas. Você poderia contar pra gente um pouco mais sobre esse projeto? 


WILLIAM: — Sim. Bom, faz oito anos que eu sou professor na UFMS, e… Obviamente, quando eu cheguei aqui em Campo Grande, gradualmente eu comecei a conhecer um pouco mais da cultura local, e conhecendo a cultura local comecei a ter contato com as culturas que formam tudo que ocorre aqui no estado de Mato Grosso do Sul. E, confesso que esse processo me, me… Me impressionou a pouca quantidade de registros sobre as práticas musicais das etnias que hoje ocupam os territórios em Mato Grosso do Sul. E, tem um grande colega meu, lá no Curso de Música da UFMS, que é o professor Evandro Higa, especialista em música do Mato Grosso do Sul, mas mais ligado às práticas do chamamé, da polca paraguaia. Conversando com o Evandro, ele falou: É William, é um trabalho por se fazer. A gente não tem ninguém que realizou, com exceção da professora Graciela Chamorro, da UFGD, que é uma professora da antropologia que se dedicou com mais rigor acadêmico a estudar as manifestações musicais dos Guarani. E obviamente, em Mato Grosso do Sul nós temos onze etnias, os Guarani são só uma delas. E essa foi uma inquietação que me acompanhou, e obviamente a gente recebe alunos de etnias indígenas e que vem para o Curso de Música em geral, muito desconectados da sua própria tradição. E aí, acho que nesse percurso todo, foi… Vários encontros, de novo, eu falei de encontro com grandes mestres, mas, para mim isso permanece com os alunos que eu vou tendo o prazer de ter, especialmente aqueles que eu posso orientar mais de perto, e eles me dão uma oportunidade de ter que estudar que sem isso eu não iria correr atrás com tanto afinco, provavelmente. E aí, houve essa aluna, a Mariana Cabral, que… Bom, é uma história longa, mas ela mesma escreveu no TCC dela, que foi uma auto etnografia sobre o processo dela de descoberta da própria etnia Terena. Como que um curso do qual eu fiz parte da organização, durante a pandemia, sobre música e tecnologia, abriu a mente dela para buscar as suas próprias raízes, digamos culturais e musicais. E nesse processo de redescoberta de si, e eu como professor acho que minha principal função é tentar ajudar o aluno a pesquisar, ajudar o aluno a descobrir coisas, facilitar esse caminho. Mas, de novo, a gente esbarra nessa limitação de referencial bibliográfico, de documentação já existente. Então resumindo, essa, essa… Essa demanda, ao mesmo tempo esse interesse crescente de alunos que aparecem, motivou que a gente propusesse, ano passado no edital da Fundect de projetos relacionados aos povos originários, esse projeto que é Musicalidades Indígenas no Mato Grosso do Sul. Então, nesse primeiro momento, o nosso projeto é muito singelo. É… É meramente a gente fazer um primeiro panorama de quais são as manifestações musicais dessas etnias. Porque, de novo, isso ainda não está documentado, com exceção dos Guarani, feito pela professora Graciela Chamorro. E obviamente, em relação aos Terena, é algo que a Mariana já está fazendo no projeto dela de Mestrado hoje em desenvolvimento no PPGEL. E junto disso, então, a gente tentar fazer um primeiro panorama, objetivando, e aqui a gente sabe, projeto de pesquisa a gente tem uma ideia que pode se transformar no meio da execução. Mas, a gente tem um projeto, uma proposta, de que ao final desse primeiro mapeamento bem inicial, que a gente consiga minimamente construir um material didático que possa ser levado para as escolas de ensino básico.


LETÍCIA: — Nossa, muito legal. 


WILLIAM: — Porque a gente sabe que esse conteúdo hoje, ele está nas ementas das escolas, mas ao mesmo tempo a gente sabe que os professores não tem simplesmente material para trabalhar esse conteúdo. Então, de novo, acho que de um ponto de vista de um projeto de extensão, de uma universidade pública que tem como objetivo facilitar a difusão do conhecimento para comunidade externa, eu acho que a gente pode fazer nesse momento, dada essa escassez, pelo menos produzir esse primeiro material que talvez sirva também como pontapé inicial para outras iniciativas, talvez mais focadas em cada uma das etnias, como a professora Graciela fez com os Guarani e a Mariana com os Terena, e aos poucos a gente possa ter um crescimento desse conhecimento sobre as musicalidades indígenas em Mato Grosso do Sul.

LETÍCIA: — Muito pioneiro. Nossa, muito pioneiro um projeto assim. Muito legal. 


LUCAS: — Uhum. Muito legal. Importante essa construção de material para que a educação básica consiga abarcar. É… Mas, enfim. Nesse contexto, ainda sobre esse projeto sobre as musicalidades indígenas, a gente queria saber quais são as diferenças entres as práticas musicais indígenas e não indígenas. Tanto de ordem teórica, quanto prática, assim. 


WILLIAM: — Bom, outra pergunta nada simples. Haha (risada). Não sei se consigo uma resposta curta, mas vamos tentar. Eu acho interessante primeiro pensar não o que tem de diferente, mas o que tem de parecido. 


LUCAS: — Maravilhoso.


WILLIAM: — Porque, assim, nós pessoas brancas em um contexto não apenas de globalização, mas de um contexto extremamente influenciado por lógicas de mercado. É provável que a experiência musical de todos nós esteja muito ligada a práticas musicais que nos foram entregues por meio de algum dispositivo de mercado. Eu falei mais cedo que minha primeira experiência foi com Os Paralamas do Sucesso. Então eu fui lá, tinha um disco, tinha uma relação mediada. É lógico que no meu contexto direto e familiar, o que tinha era música caipira, música da igreja.Essa era a música comunitária, de fato. A música que veio depois, veio por meio do mercado que leva essas músicas a outros lugares. Então, eu acho que quando a gente pensa nas nossas práticas e nas experiências musicais, elas estão a todo momento sendo mediadas por forças das mais distintas ordens, a gente começa a pensar que aquilo que forma a nossa – e aqui eu falo identidade, não no sentido delimitação de quem nós somos mas de pontos de referência no mundo. Ou seja, quando a gente se sente mais ou menos confortável, onde que a gente está? O que estamos escutando, onde a gente está habitando? Nesse sentido, a gente percebe que nessas comunidades há música feita. E em contextos específicos, como contexto de rituais, no geral ligadas a algum tipo de manifestação religiosa e mística. Nesse sentido, estão muito ligados a tradição musical, que a gente pode falar ocidental, uma tradição musical pré-moderna. Sempre volto a Bach porque para mim, é meu grande referencial. Mas, vamos lembrar do Bach fazendo música, como eu disse há pouco. O Bach estava lá fazendo música para a comunidade dele, para experiência religiosa deles. Ou seja, existiu uma elaboração musical, um pensamento, mas sempre em serviço do que aquela comunidade tinha como experiência que atravessasse aquela existência física ali. Então,acho que nesse sentido existe o ponto que interessa muito, que é olhar a música como parte de um ritual. E quando eu digo parte de um ritual, é de fato parte de uma forma de viver que não se delimita apenas numa cerimônia de uma ou duas horas. Ela atravessa todas as demais instâncias da vida, seja a hora de comer… Não é? Ninguém faz um churrasco sem música. Então, todas essas experiências vão se formando e isso atravessa todas as culturas. Isso a etnomusicologia tem nos ensinado, que a harmonia pode mudar, o ritmo pode mudar, ou seja, a estrutura, o código pode mudar. Mas, as construções comunitárias que se servem da música, curiosamente são bastante correspondentes em culturas distintas. Então, essa ideia que você tem uma ligação com uma força transcendente através da música, que você, de alguma forma opera qualquer tipo de transformação física, de bem estar. No Ocidente a gente vai tudo via ciência, mas tudo que estamos acostumados a ver no Ocidente como musicoterapia, ou seja, práticas terapêuticas que se utilizam da música, obviamente uma comunidade indígena faz dentro da sua própria construção, dentro da sua própria cosmovisão,  como uma reza e todas essas rezas cantadas. Ou seja, a gente pode aqui falar longamente dos inúmeros pontos de contato entres essas musicalidades com a nossas práticas. Talvez a grande questão, e aí esteja o ponto de divergência, esteja que no Ocidente a gente realmente tem essa preocupação, principalmente na universidade em teorizar, em fazer tudo caber num artigo, para que tudo isso possa ser escrito verbalmente. Só que mesmo no Ocidente a gente já está descobrindo que essas descrições elas são parciais, elas são limitadas. Então, se torna muito enriquecedor poder ter contato com as musicalidades que, de alguma forma, ainda não foram tão influenciadas por essas lógicas de mercado, por essas influências mais globais, porque elas nos relembram as nossas próprias experiências, como elas se formam a parte dessas outras influências, que nem sempre são as que a gente escolheu para nós. E, com isso, a gente pode olhar que a teorização sobre a música geralmente se baseia em uma melodia, em uma harmonia… Dó Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó. Ela não é necessária para expressão musical. Ou seja, uma comunidade indígena, ela não tem partitura, não tem essa construção e mesmo assim faz música. Ela prescindindo dos códigos ocidentais, ela torna aqueles membros aptos a se expressarem por meio da musicalidade. Então, acho que isso nos ensina muito, e como eu disse lá no início, falei sobre essa música que se interessa por inovar, ela nos lembra que a gente, enquanto ser humano em transformação, somos capazes de criar novos e novos códigos, novas e novas formas de expressão. 


WILLIAM: Que as formas que parecem até imutáveis de tão solidificadas que estão, ou seja, a gente aprende que esses são os acordes, as notas, e descobre que tudo isso talvez não precise ser assim. Que a expressividade talvez atravesse isso, e aí mesmo a música que não é feita com essas estruturas também é capaz de nos afetar e comunicar algo mesmo que a gente não pertença àquela cultura. E aí a gente tá nesse limiar da arte de fazer parte de uma cultura ao mesmo tempo que pode atravessar essa cultura e transformar a própria cultura. É isso que arte faz é isso que ela tem o potencial tão distintivo e que eu acho que olhar as manifestações artísticas das comunidades indígenas pode nos ensinar também.


LETICIA: — Agora eu vou pedir licença para o Lucas. Eu vou avançar uma pergunta porque acho que ela cabe aqui agora..


LUCAS: — Não, perfeito! (risos)


LETÍCIA: — É uma pergunta sobre essa questão da teorização mesmo. Porque a gente pensa na linguagem verbal, a gente tem a questão das letras e da escrita né, e é assim que elas se manifestam. E a música também tem a questão da notação, seja na partitura, seja até pela cifra. É uma forma de materializar aquele som, de ele estar ali anotado. E aí toda a equipe estava quando construímos o roteiro e as perguntas, se seria possível ou mesmo comum fazer a notação, essa teorização de sons que são sons por exemplo de um motor ligado, um zumbido, uma sirene… Se é possível ou comum transformar esses sons em algo anotável.


WILLIAM: — Na realidade a gente ainda pensa um pouco, mas tudo sugere que a origem da música esteja muito ligada a isso. Ou seja, o próprio fato da gente tocar determinadas estruturas musicais em si já parece um registro de sons ouvidos. Então os exemplos são inúmeros, mas talvez o primeiro que me vem à cabeça é “As Quatro Estações”, de Vivaldi, lá ele copia sons de pássaros pro violino tocar, ou a gente tem por exemplo a sinfonia 6 de Beethoven, que ele também copia vários sons de pássaros ali para serem tocados. Então assim, essa ideia de que a gente faz música baseado nos sons que a gente escuta na natureza permanece ligada ainda hoje quando a gente escuta essas práticas dos povos originários. E obviamente no século 20 onde a possibilidade de gravar sons se tornou viável, a gente hoje consegue não apenas ter uma relação de registrar via notação os sons que a gente escuta, e não só sons naturais como também sons artificiais como de uma buzina, uma sirene, seja lá o que for, mas também temos a capacidade de registrar esses sons por meio da gravação, de manipular esses sons eletronicamente em estúdio, e a partir desses sons manipulados, fazer música com eles também. Então eu acho que o ponto que a gente se encontra hoje sobre as investigações sobre o som é justamente mostrar que a gente escuta muito menos do que a gente ouve, e que dentre os sons que a gente passa aqui ao nosso redor, a gente tá captando muito poucos deles. Se a gente tivesse realmente uma sensibilidade maior para ouvir, a gente poderia aprender muito mais sobre o mundo. E aí talvez eu possa inclusive citar o projeto que ano passado eu pude fazer parte, que é o projeto Pantanal Sounds, que a gente foi com uma equipe da Universidade de Harvard para a base de estudos do pantanal da UFMS, justamente porque é a nossa compreensão de todos ali que estar dentro do ecossistema entendendo a sua própria dinâmica, entendendo a sua paisagem sonora (que é o terno que a gente dá pra esse conjunto de sons) ele se torna uma percepção muito mais ampliada. O professor de biologia de Harvard Brian Farrel, que veio junto com a equipe, o projeto de pesquisa dele é basicamente esse. Ele diz “Olha, quando a gente olha uma espécie animal e fazemos uma foto, um vídeo, a gente consegue ver ali um retrato de mais ou menos 2, 3 metros ali.” É muito limitado o que a gente consegue filmar ou fotografar de uma espécie. Agora por meio da escuta, com um gravador, a gente consegue registrar o que tá acontecendo em quilômetros quadrados ao redor daquele ponto, e isso nos ensina sobre como está sendo a divisão de território dessas espécies, como é que eles estão ocupando aquela região. E se a gente encontra na análise desse som algum buraco, provavelmente indica que está havendo algum desequilíbrio dentro daquele ecossistema, porque todas as espécies se organizam para ocupar o espaço não apenas territorial mas também sonoro. Então isso nos mostra como que a organização sonora é muito mais antiga do que os nossos esforços em teorizá-la no ocidente. Mas quando a gente tá aberto a ouvir isso tudo eu creio eu isso seja muito importante. E aí eu até retomo uma pergunta que o Lucas fez pro Vinicius antes… O que a gente ensina pra uma criança? E aí tem um teórico chamado François Delalande que ele divide dentro da sua pedagogia, que é bastante influenciado pelo Jean Piaget, a educação musical entre competências gerais e  específicas. Essas competências gerais são aquelas que servem para qualquer coisa na verdade. Não se referem a  tocar um instrumento nem a cantar bem, que seriam competências específicas. Tem haver com a gente ser capaz de escutar o outro, que é uma  capacidade que parece estar tão carente nos nossos dias…


LETÍCIA: — Total! Carentíssimos. Falta escuta de tudo, eu acho.


WILLIAM: — Exatamente! E que a música pode nos ajudar muito. Quando a gente aprende que fazer música, mais do que fazer, é ouvir. E aí então acho que por meio dessa percepção, a gente constrói essas competências gerais, que tem tanto a contribuir para a música e para a linguagem, mas para qualquer pessoa na verdade.


LUCAS: — Uau!


LETÍCIA:  — Uma aula!


LUCAS: — Incrível! Então só pra encerrar mais pra esse lado do assunto, a gente queria saber se podemos compreender que a música assim como é feito no discurso de cada um, ela pode ser adequada a diferentes contextos. Por exemplo, estamos aqui conversando dentro de uma entrevista que faz parte do podcast que a gente está trabalhando. Mas por exemplo, se eu estiver conversando com a minha família vou ter um discurso um pouco diferente, se eu estiver ministrando uma aula vai ser diferente, se eu estiver em um contexto mais formal… Enfim, queria saber se a música tem essas adequações a diferentes contextos, e se dentro disso nós encontramos alguns padrões na música, seja da maneira formal ou informal, pensada ou não pensada, que se assemelha mais ou menos como os vícios de linguagem. Por exemplo, estou conversando aqui, aí eu pergunto pra todo mundo se existe isso na linguagem musical (se a gente tá tratando como linguagem musical), por exemplo dentro dos clichês, dos riffs ou algo do gênero.


WILLIAM: — Eu acho que o Vinicius pode responder também, mas eu posso falar rapidamente que não apenas isso é possível, acho que isso que você falou tem muito a ver com o conceito de heterodicurso de Bakhtin, de que não apenas a gente fala alguma coisa mas falamos algo em um contexto pra alguém, e isso determina qual estrutura linguística estamos utilizando.


LUCAS: — Com algum objetivo, de preferência.


WILLIAM: — Exatamente. Mas que  além disso a nossa fala está sempre sendo atravessada pela fala dos outros. Então isso me interessa muito porque embora seja possível fazer música sozinho e eu faça bastante isso, eu diria que isso é o menos prazeroso de fazer, porque o mais legal é fazer música com outros. Então a primeira coisa é que justamente a expressão musical possibilita esse espaço de diálogo na medida que ela agrupa diferenças, e ao invés de suprimir essa diferenças, ela cria um ambiente onde essas diferenças estão sendo negociadas, e é isso que torna essa expressão coletiva tão mais rica. Mas além disso, essa possibilidade da gente infundir algum grau de individualidade na própria estrutura, é sem dúvida daí que surgem os estilos. E daí que a gente pode ouvir AC/DC e Led Zeppelin e saber que são coisas totalmente diferentes. Ou ouvir Noel Rosa e Cartola e saber que são dois compositores diferentes. Estamos falando de gêneros semelhantes, de contexto sociais semelhantes, mas de expressões que ao se formarem de uma forma tão individual, elas acabam sendo atribuídas a um sujeito específico. E aí é interessante porque a gente nas linguagens fala de vícios, e acabam sendo uma noção  de alguma forma um pouco negativa. E aí mais uma vez as artes nos possibilitam isso, ver que antes de serem negativas, são simplesmente marcadores de uma expressão individual, e que a gente pode conscientes delas escolher seguir com elas ou não. E eu acho que isso é algo que nos liberta também para a nossa própria construção de si. Acho que o Vinicius tem mais a falar sobre isso.


VINÍCIUS: — Imagina! Você falou basicamente o que eu iria falar. Que é justamente sobre isso mesmo. De que isso vai trazendo características ao músico, ao estilo musical, mas eu enxergo mais ao músico em si. Esse fazer musical em conjunto que a gente tá se tornando uma mistura das nossas referências, e o que a gente assimilou dessas referências também. E aí quando você pergunta sobre esses vícios de linguagem para a música, é uma coisa que eu vejo como interessante porque também traz essa caraterística ao músico em si, à performance. Eu vou com alguns amigos para tocar alguns hinos, e aí essas referências para esse hinos são diversas. E daí cada um traz uma característica diferente ou de um lugar diferente, porque esses amigos podem vir de vários estados do país, e cada estado faz de uma forma. (traz assim uma característica) diferente ou de um lugar diferente né porque esses meninos eles podem vir de vários estados do país né cada estado  faz de uma forma né lá na Bahia tem sedes, lá na… no Rio de Janeiro tem. Aí faz ali uma levada um pouco diferente né Então é, exatamente tipo, eu consigo pensar nisso mais de uma forma positiva né nesses vícios de linguagem na música em si.


LUCAS: — Só deixa eu voltar um pouquinho nesse gancho. Quando foi falado, pelo William, sobre as diferenças de estilo que se tinha, por exemplo, nesse contexto, entre aspas, “sambístico” diferenciar, somente por ouvir, Cartola de Noel Rosa, por exemplo. Na opinião de vocês isso tem se perdido ou está se perdendo por conta dessa globalização aplicada na música ou não. E queria saber um pouco da opinião.


WILLIAM: — Olha eu dou aula disso então eu posso dizer que a gente tem trabalhos que têm mapeado, por exemplo, a quantidade de sequências de acordes, digamos, o recorte é dentre as músicas mais tocadas nas últimas décadas quais padrões harmônicos têm sido utilizados e de fato existe uma homogeneização muito grande. Ou seja, o número de combinações de acordes que haviam nas músicas mais tocadas, assim… há trinta anos atrás, era muito maior que do que o número de combinações de acordes utilizadas na combinações mais populares dos nossos tempos. Então, de fato o que a gente tem é uma homogeneização das estruturas, isso já tem sido documentado. Mas assim, eu tenho dificuldade de ser conservador, eu confesso. Eu acho que simplesmente nos mostra assim que se essa prática musical ela tá se esgotando, ela se… basicamente se autofagocitando assim de tão repetitiva, que a lógica de mercado faz com que ela seja, isso então dá espaço pra gente buscar outras formas de fazer música fora desses meios. Pra mim tá muito ligado das coisas que eu tenho estudado por conta de tocar música com tecnologia, da inteligência artificial… Então uma música dessas, feitas com tanta… de uma forma tão pré fabricada, de uma forma tão já homogeneizante, de fato é uma música que uma inteligência artificial não teria dificuldade nenhuma em fazer. Então talvez o interesse seja: tudo bem vamos deixar a inteligência artificial fazer essa música e a gente se dedicar a fazer uma música que não seja assim. E essa música a inteligência artificial vai ter mais dificuldade em fazer. Por Isso tudo tem a ver né com… Acho que no final das contas a ligação realmente entre esse olhar pras artes. esse olhar pra música, é pensar assim: que tipo de sensibilidade a gente tá buscando criar em nós e nos outros. Porque, obviamente, se a gente se torna insensíveis pra certas coisas da vida a gente vai deixar de sequer almejar outras delas na nossa construção de vida, inclusive a nossa construção política de sociedade. Então as artes nos fazem sensíveis a experiências de vida que por vezes a gente não é… não está… não estão ao nosso alcance, na nossa vida aqui. Então a gente vislumbra essas experiências através das artes e a gente começa a falar “poxa, talvez seja possível! Vale a pena a gente buscar  construir isso.” E quando elas se tornam tão homogeneizantes a gente acaba se conformando, a vida é isso então é isso que a gente pode esperar. Por isso eu acho que elas… esses… essa restrição tão grande nos mostra que alguma coisa tem que ser feita, vai ser feita pra que a gente atravesse essas formas de se pensar e  se fazer música que de fato  se tornam, pouco a pouco, cada vez mais restritas.


LETÍCIA: — A gente vai se aproximando do final. Nós temos uma pergunta que sempre encerra as entrevistas né Que é: o quanto da identidade de vocês, como pessoa, como sujeitos no mundo, tem relação com as línguas que vocês falam e com as línguas que vocês usam, e se vocês conseguem se ver sem alguma das línguas que vocês falam ou usam?


WILLIAM: — Vai aí Vinícius.


LUCAS: — Rapidinho, rapidinho! E aproveitando né… pra ficar tudo numa mesma pergunta, estamos considerando as expressões artísticas também. No caso, a música, pensando na temática do episódio, se os instrumentos que vocês tocam, ou as expressões musicais que vocês fazem, tem essa mesma influência, se tem relação com a identidade, com a subjetividade de vocês. E se vocês conseguem se ver sem alguma delas também.


VINICIUS: — A música, desde que ela se apresentou a mim também, ou eu me apresentei a ela, se fez necessária, sabe? Ela me salvou em muitos aspectos né Porque eu sempre fui mais introspectivo. A música e as artes, em si, elas trouxeram esse… Tiraram de dentro… Expôs isso que havia dentro de mim pro mundo. Então assim, através da música, através de cantar, através de contar histórias eu consegui explorar mais a oralidade, eu consegui falar, ou então me expressar através da música. Então assim, se eu conseguir viver, é de forma bem triste, é uma versão mais triste de mim. Então o pouco de… assim… não o pouco, mas o tudo de mim que eu já mostrei pro mundo foi por conta dessa linguagem, dessa… Por conta da música em si né, de todas as formas que eu consegui explorar ela, vivenciar ela no mundo.


LETÍCIA: — Que resposta linda!


WILLIAM: —- Bom a pergunta né O quanto… Se a gente se vê… O quanto da nossa identidade é construída por essas línguas. Eu confesso que eu gosto bastante do conceito de devir né e acho que a grande beleza dele é que nos mostra que a gente é o que é agora e talvez amanhã a gente possa ser outra coisa. Então, eu adoro aprender, como eu disse, eu sou imensamente grato por todos os mestres que eu tive, muito grato pelos alunos, por ter a oportunidade de ter contato, de orientar, e de fato eu hoje sou o que sou por todos esses encontros que formaram, nesse heterodiscurso, a minha forma de ser, mas também fico ansioso por ser outras coisas no futuro, ou seja, pelas próximas experiências, pelos próximos encontros, por aprender novas línguas, tanto idiomas quanto também novas formas de expressão musical e de outras formas de expressão na vida né. Cada… Esse… Acho que esse é um privilégio que os professores podem ter de que por mais que a gente envelheça a gente tá sempre tendo contato com uma geração mais nova e como eu disse, eu tô longe de ser pessimista. Eu acho que cada uma traz uma coisa diferente, nova, e a gente consegue, a partir disso, se atualizando em novas versões aí, e eu acho, são sempre mais interessantes também. Então, vale a pena continuar ouvindo e aprendendo pra ser coisas diferentes no futuro.  


LETÍCIA: — Então era isso, gente .Agradece, a gente agradece imensamente, mais uma vez, a participação de vocês, a disponibilidade de vocês de virem aqui. A gente sabe, mais uma vez, que vocês têm agendas super cheias, os dois… Então a gente agradece imensamente, de verdade, tudo. foi uma aula aqui hoje, né Lucas? 


LUCAS: — Maravilhoso.


LETÍCIA: — Eu e o Lucas a gente tem uma ligação com a  música também.


LUCAS: — Extracurricular né, vamos deixar bem claro!


LETÍCIA: — Extracurricular! Foi muito incrível escutar vocês!


LUCAS: — Tá no coraçãozinho agora.


WILLIAM: — Eu vou agradecendo. Obrigado Letícia, Lucas, todos da equipe do projeto, e parabéns pelo trabalho do podcast. Faço votos pra que logo (vo)cês permaneçam trazendo mais gente interessante pra conversar.


LUCAS: — Maravilhoso.


VINICIUS: — Contente! Muito contente de tá aqui com vocês e de poder falar um pouquinho da minha experiência e de poder ouvir. Ouvir o professor William também, que é bem bacana. É isso gente, muito obrigado pelo convite.


MARIANA: — E a palavra do dia é estribilho. Segundo o Dicionário Aulete Digital, “Verso(s) que se repete(m) ao final de cada estrofe ou em intervalos regulares de uma composição, de música ou poesia, REFRÃO”.


LETÍCIA: — Neste episódio do Línguascast, os áudios são do freesound.org. Direção e roteiro foram realizados de forma colaborativa por toda a equipe do LínguasCast. A edição de som e mixagem feitas pelo Henrique dos Santos Mosciaro. 


HENRIQUE: — A pré-produção é realizada por Letícia Carriconde e Ana Karla Miranda. Nossas artes são feitas por Mariana Piell. Nossa transcrição e pós-produção foi feita pela Rosa Ruiz, Julia Beatriz de Castro Martins, Lucas Modesto, Letícia Carriconde. O podcast é produzido pela Ana Karla Miranda.


ANA KARLA: — Este é o terceiro ano do LinguasCast. Você pode escutar as temporadas anteriores e todos os episódios desta no Spotify, ou no Youtube, pelo canal LínguasCast. Não deixe de nos seguir no Instagram @linguas.cast. A transcrição deste episódio pode ser acessada em linguascast.blogspot.com.


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