Transcrição T2 Episódio 03 - Ilhados pela língua

HENRIQUE: — Hey, everybody! Este é o terceiro episódio da segunda temporada do LínguasCast, o seu podcast sobre linguagens, identidades e otras cositas más. O título do episódio de hoje é: “Ilhados pela língua”. Let’s que vámonos!

CONVIDADOS FALAM: — eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis, eles tagarelarão.

MARIANA: — Oi, oi, tagarelas. Sejam bem-vindos a mais um episódio do meu, do seu, do nosso LínguasCast! Eu sou a Mariana Piell…

LUCAS: — Y yo soy Lucas, com "c", por favor! Hello, linguarudes! Boas-vindas ao terceiro episódio da nossa segunda temporada!

MARI: — O tema deste episódio é o okinawano, que é a língua falada na Ilha de Okinawa, local de onde veio a maior parte da comunidade japonesa de Mato Grosso do Sul.

LUCAS: — E para falar sobre isso nós convidamos Akira Uema, descendente okinawano que atuou na Associação Okinawa do Distrito Federal. Em 2015, Akira participou da formulação de dicionário okinawano-português, [e] desde 2017 tem atuado no curso de língua okinawana e atualmente conduz um círculo de estudos via Zoom.

MARI: — Nós agradecemos imensamente por você ter aceitado o convite da equipe do LínguasCast e seja muito bem-vindo, Akira

AKIRA: — Ah eu que agradeço pelo convite, né. Para mim é sempre um prazer falar sobre as línguas de Okinawa, né. Assim, eu sou uma pessoa que, como descendente de okinawano, né, sempre tive interesse em saber mais sobre minhas origens, né, e eu acabei me interessando pela pela língua, né, assim… então okinawano é uma língua que eu eu estudo pelo menos… quase uns 20 anos mais ou menos, né, desde o início primeira vez que eu comecei, [e vai] até os dias de hoje, né? E continua aí nessa empreitada, né, é um… acho que é um trabalho pra vida toda na verdade, né.

MARI: — Bom, Akira, quando nós fomos formular o roteiro do episódio, para introduzir o tema, a gente ficou muito em dúvida sobre como representar o espaço físico em que se fala o okinawano, porque tanto a palavra província, quanto a palavra região, tem no histórico políticas que são diferentes e eu queria saber se você poderia nos contar um pouco sobre esse processo histórico de formação de Okinawa como território que hoje pertence ao Japão.

AKIRA: — É, isso aí é uma pergunta que é muito boa, né. Bem, na verdade, né, o Japão em si, se você for olhar ele no mapa, ele tem quatro ilhas principais e um monte de ilhas pequenas espalhadas hoje em dia. Então desde o norte tem Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu, são as quatro ilhas principais. Abaixo de Kyushu, quando você olha no mapa, entre Kyushu e Taiwan tem uma cadeia de ilhas, que a gente chama de Arquipélago de Ryūkyū, essas ilhas configuravam um país independente até 1879, que era o Reino de Ryūkyū. Então essas ilhas são, na verdade, onde as línguas de Ryūkyū são nativas, inclusive… incluindo o okinawano. O okinawano é uma dessas línguas e é a língua falada na ilha principal desse arquipélago que é a Ilha de Okinawa, e, esse reino, ele tem uma história particular. Ele tem seu período de pré-história, depois de desenvolvimento, assim… é de pré-história, né, então tem… Como que eu posso explicar? Já foram encontrados fósseis arqueológicos de seres humanos que viviam [lá] bem… há muitos anos na antiguidade, de povos que seriam austronésios e esses povos acabaram sendo deslocados por migrações mesmo, né? E aí, a gente entra num período que começa a surgir na ilha principal, [Ilha] de Okinawa, como se fosse “três domínios”, que funcionavam independentemente entre si. Esses domínios vão procurar ter contato com a China e a gente começa a ter um embrião de um reino se formando, depois, no século XV, ele vai ser unificado [e] vai virar, de fato, o Reino de Ryūkyū em 1420-alguma coisa, e esse período de Reino de Ryūkyū, ele é dividido em duas dinastias: a primeira dinastia Shō e a segunda dinastia Shō; e vai terminar lá em 1879, quando o Japão de fato anexa o Reino de Ryūkyū, e na verdade é uma história bem complexa, tem um jogo geopolítico no meio. O Japão anexa o Reino de Ryūkyū em uma época em que os países europeus tavam dominando vários lugares na Ásia, inclusive a China, né. Era justamente nessa época, quando a dinastia Qin da China tava em decadência, aquilo que os chineses chamam de… acho que os chineses tem um nome pra isso, né?  Acho que o “século da humilhação” para eles, né, que eles perderam duas guerras do ópio etc. E o Japão, ele meio que vê isso ocorrendo, então o Japão começa a jogar o jogo que os ocidentais jogavam, de tentar definir o seu território geográfico, frente às potências européias, e anexação desse Reino é feito justamente dentro desse contexto. E então, o governo Meiji, já em 1879, ele abole o Reino de Ryūkyū e divide esse reino em dois. Então as ilhas que ficavam ao norte de Ryūkyū, ele são colocados sob a jurisdição da província de Kagoshima, que é da Ilha de Okinawa pra cima, e o resto do reino, que vai de Okinawa pra baixo, até uma ilhazinha que se chama Yonaguni, que é bem pequenininha, perto de Taiwan, é colocado sob a jurisdição da província de Okinawa. Assim, resumindo séculos de história é mais ou menos isso que acontece, né, e, a partir de então, o Japão, ele começa realmente a introduzir a língua japonesa na ilha, muda o sistema educacional etc, para transformar as pessoas ali em cidadãos japoneses, né, mais ou menos isso.

LUCAS: — Nossa, bastante coisa. É…

AKIRA: — [rindo] Bastante coisa.


LUCAS: — Inclusive, aqui no podcast, nós já tivemos outros episódios sobre lugares nos quais várias línguas circulam. Em Okinawa, a gente queria saber, quais são as línguas faladas, quais são as línguas oficiais e, entrando também nesse âmbito dessa reformulação escolar, quais são as línguas ensinadas nas escolas.

AKIRA: — Ah tá… É… na verdade, as línguas de Okinawa, elas formam uma parte de uma família linguística que é a família das línguas de Ryūkyū, porque não é só a ilha de Okinawa. Então, assim… falando desde o norte, assim mais para cima, ali tem um arquipélago que se chama Amami, que fica entre a ilha de Okinawa e Kyushu, ali também tem uma língua-irmã da língua de Okinawa, falada naquela região. Então começa desde ali de cima, então a gente tem como se fosse uma espécie de contínuo dialetal, algo semelhante o que acontece quando a gente observa, por exemplo, nas línguas europeias. Por exemplo, quando a gente pega a família das línguas latinas, se a gente começa a ver o que era o território que era o antigo Império Romano, e a gente vai se deslocando, por exemplo, desde Portugal, em direção ao leste, a gente vai ver o que a língua vai mudando né, e algo semelhante acontece ao longo desse arquipélago, então é uma família inteira de línguas e muitas vezes não são inteligíveis entre si, então, por exemplo, a língua que é falada na ilha de Okinawa, que a gente chama de okinawano, não é inteligível com as línguas das outras ilhas que compõem a província de Okinawa, por exemplo, então assim… qual que era a sua pergunta mesmo? Já perdi, desculpa.

LUCAS: — [risada] Não, tudo bem. 

AKIRA: — [risada]

LUCAS: — A pergunta é sobre quais são as línguas oficiais, quais são as línguas faladas em Okinawa, e agora já vou abrir pras regiões adjacentes, e quais são as línguas, se existe mais de uma, ensinadas na escola.

AKIRA: — Ah, entendi, agora eu lembrei por que comecei a falar disso. Então, assim, respondendo a essa pergunta, sim, é uma família de línguas mesmo, né, assim… é… é como se fosse, tipo assim, um contínuo dialetal mesmo, você tá numa região de Okinawa, fala de um jeito, você vai pro– às vezes pro bairro seguinte, já começa a ter mudanças, né? E aí, assim, até o início desse século, as pessoas realmente tratavam essas línguas todas como… usando um termo só, chamavam de dialeto, né? Que era como essas línguas eram vistas. Só agora, no século XXI, em 2009, é que a UNESCO publicou um atlas de línguas em extinção e usou uma classificação pra falar das línguas de Ryukyu, em que eles reconhecem 6 “línguas” ao longo do arquipélago. Então, por exemplo, é… como eu disse, o arquipélago Amami tem sua própria classificação, chamam de Amami mesmo, aí Amami inclui a ilha própria de Amami — tem uma ilha — e logo abaixo tem uma ilha que se chama Tokunoshima. Depois de Tokunoshima tem uma ilha que chama Okinoerabu. Dessa ilha, incluindo Yoron, que é a próxima, e o norte da ilha de Okinawa, a UNESCO considerou como um grupo, um outro grupo, que se chama Kunigami. Porque realmente, o pessoal que é do norte de Okinawa já fala bem diferente do pessoal do centro-sul. E eles agruparam essas línguas dessa forma. Aí vem o okinawano do centro-sul, o centro da ilha e o sul. Aí umas ilhazinhas que tem aqui ao longo da costa, bem perto da costa da ilha principal de Okinawa, né? Depois, indo mais pra baixo, tem a parte sul do arquipélago, que é Miyako, e todas as ilhas que estão ali em volta, Ayama, que é o próximo grupo de ilhas, e a última ilha, lá no final, que se chama Yonaguni, tem uma língua muito peculiar dela própria, que fez com que ela merecesse sua própria classificação. É a última ilha antes de Taiwan. De Yonaguni dá pra ver Taiwan no horizonte, assim.

LUCAS: — Nossa!

AKIRA: — Sim. É meio difícil falar assim, tem que mostrar um mapa, né? Tem que mostrar um mapa pra ficar mais claro. Mas assim, acho que colocando no Google “línguas de Ryukyu”, no Google Imagens, aparece um monte de mapa ilustrando. Então, a UNESCO, a primeira vez que alguém realmente classificou essas línguas de alguma forma. E essa classificação da UNESCO foi baseada nos estudos de um pesquisador japonês, que se chama Uemura. Uemura Yukio. Ele classificou dessa forma. Seriam, por exemplo, seis línguas, vamos dizer assim. Só que há outros linguistas que classificam um pouquinho diferente, assim. Tem outros linguistas que, por exemplo, agrupam todas as línguas de Okinawa num grupo só, por exemplo. Então, assim, isso não é muito… Isso não é um “caso encerrado”, vamos dizer assim. Mas, assim, isso dá uma ideia de como acontece, né? A variação linguística.

MARIANA: — Akira, dentro desse processo de tentar preservar a língua — atualmente a gente tem uma tentativa de retomar o contato com a língua, de preservar — eu queria saber qual é a importância de ter falantes fora de Okinawa. Como por exemplo em comunidades okinawanas aqui no Brasil.

AKIRA: — Uma das maneiras em que o Japão fez pra poder transformar os okinawanos em cidadãos japoneses foi ao longo do século XX estigmatizar as línguas locais. Então, assim, o Japão implementou políticas de educação em Okinawa muitas vezes agressivas. Por exemplo, as gerações mais antigas falam que eles eram punidos por falar as línguas locais, as línguas nativas, em sala de aula. Por exemplo, no início do século XX, o governo japonês instituiu um sistema que eles chamam de hogen fuda, em japonês, que é o “cartão do dialeto”. Primeiro, assim, antes de falar disso, o próprio fato de se considerar as línguas como dialeto. Isso foi um uso político que foi feito pelo governo Meiji, né, assim. A primeira pessoa que utilizou esse termo (dialeto) pra se referir às línguas de Ryukyu foi um oficial do governo Meiji responsável pela anexação do reino de Ryukyu ao Japão, um cara chamado Matsuda Michiyuki, o nome dele, né? Ele foi a primeira pessoa que utilizou esse termo, né? E esse termo passou a ser utilizado de maneira ideológica. Não no sentido de variação linguística, como é utilizado no campo… em sociolinguística, não. O termo era, assim— a ideia que se passava era a língua da educação deveria ser o japonês, inclusive concomitante com isso, o Japão ainda estava definindo sua língua nacional. Estava em processo de definição. É um processo bem interessante que aconteceu ao mesmo tempo. O Japão só vai definir a sua língua padrão, nacional, já entrando no século XX, mas antes disso eles já tinham um processo de introduzir a língua de Tóquio em Okinawa. E aí uma das justificativas para introduzir a língua de Tóquio era justamente isso. Então, assim, como as línguas locais eram os “dialetos”, os okinawanos tinham que aprender o “falar correto”, vamos dizer assim, como cidadãos japoneses. Então, começam a partir daí as justificativas. Então, eles tinham um sistema voltando ao hogen fuda, que é o termo para “cartão do dialeto” (hogen, em japonês, significa dialeto). Então eles tinham esse processo, esse sistema nas escolas pra poder — não só os professores — vigiar os alunos, mas os próprios alunos vigiarem a si próprios, porque a maneira como esse sistema funcionava era: quando o aluno falava em okinawano na sala de aula, ele era forçado a colocar essa placa pendurada no pescoço, com o sentido de ridicularização mesmo, de “ele falou o dialeto na sala de aula e a gente fala japonês”. E esse aluno era obrigado a ficar com essa placa até encontrar um colega que falasse em “dialeto”. Aí ele podia trocar e colocar no pescoço do colega. Então ficava, nas escolas, esse ambiente de todo mundo se vigiando, né? Vamos dizer assim. Então, o que acontece? Isso vai traumatizar todas as gerações futuras. Ah… que vem daí. Então, assim, é… o povo de Okinawa se vê numa situação em que falar sua própria língua coloca eles em desvantagem com relação a outros cidadãos japoneses. Por exemplo, não conseguir— se a pessoa não souber falar japonês, não arranja emprego, não consegue, né? Sofre preconceito et cetera. Então, durante todo o século XX, inclusive no pós-guerra, esse sistema de… da placa do hogen fuda vai vir com toda a força. Todos os okinawanos passaram todo o século XX achando que eles deveriam melhorar suas falas. Realmente, essa língua é… quem fala okinawano são pessoas que “não tem cultura”, a pessoa tem que falar o “japonês correto”… Inclusive, assim, o okinawano quando ele fala japonês, ele tem um sotaque okinawano. Justamente derivado do contato das duas línguas mesmo. Então assim… Isso também era fonte de estigma, então todos os pais, toda essa geração vai forçar o filho a aprender o japonês correto. E então assim… Isso faz com que a língua caminhe realmente para extinção mesmo, para haver uma substituição linguística. Mas, quando alguém que é de fora, vem pra Okinawa e fala a língua de Okinawa, e fala bem a língua de Okinawa, isso dá um choque pra eles. Dá um choque… As pessoas, que por exemplo, foram, imigraram pro Brasil muitas vezes não sofreram tanto quanto… Pelo fato de falar okinawano, tanto quanto as pessoas que ficaram. Tem muita gente que… Nessa época, a evasão escolar é muito alta, porque… Tinha criança que não conseguia acompanhar as aulas, por não falar bem japonês. E [alongado], justamente na época da imigração tem muita gente que saía da escola e aí a família acabava imigrando pro Brasil, pro Peru, pra qualquer outro canto… E nesses países acabava preservando esse idioma, ia ensinando pros filhos e etcetera. Então, eu acho que é um… Pros okinawanos verem pessoas de fora falando a língua deles, isso é um… Como é que fala? É como se fosse um baque pra eles. Eles mesmo falam isso (risada). 

LUCAS: — Nossa, muito interessante. E… Horrível, né? Vamos falar a verdade aqui. 

AKIRA: — É. 

LUCAS: —  Esse lance do hogen fuda parece muito pesado. Bom… Pegando esse gancho, então… Qual o papel dos falantes brasileiros e como foi mencionado os peruanos, que são descendentes do povo de Okinawana, na preservação das línguas okinawanas? 

AKIRA: — Bem, eu acho que… Tem muita coisa parecida entre a história do Brasil, a história da América Latina como um todo e Okinawa. Assim, eu consigo ver um padrão de colonização bem forte aqui. Feito pelo Japão. Inclusive, acho que foi estudando sobre Okinawa que eu tive contato pela primeira vez com um processo colonizatório. De ter aquela coisa de olhar assim até mesmo pros nossos próprios indígenas, o que aconteceu com eles. E… Engraçado que, quando a gente olha pro Brasil, o processo de substituição linguística que aconteceu no Brasil, aconteceu pelo menos dois séculos antes que Okinawa. Quando Marquês de Pombal vai lá e proíbe a língua geral de ser falada. Foi lá no século dezoito isso, né? Inclusive isso me fez até tentar procurar o decreto do Marquês de Pombal, e aí pesquisando, encontrei um… Uma cópia digitalizada, num site de arquivo público de Portugal. Esse decreto do Marquês de Pombal que proibia a língua geral. Acho que o decreto chama… É um nome bem grande, Diretório que se deve observar… É um nome gigante assim (risada). E lá tem um artigo sexto que proíbe o uso de língua geral pelos indígenas. E engraçado isso, foi isso que mais ou menos aconteceu com Okinawa. O Japão proibiu o uso de okinawano nas escolas. Então, eu acho que justamente por causa desses paralelos, eu acho que facilita um pouco que a gente que é descendente… É… Reconhecer esses padrões de colonização. Pelo menos eu acho. E oferecer uma outra perspectiva. Porque, aqui o pessoal não tem muito essa ideia do que é colonização. É um negócio… Por exemplo, Okinawa ainda é parte do Japão. É mais difícil de explicar… É mais difícil para eles entenderem que eles estão num processo colonizatório. Então, eu acho que… As comunidades okinawanas fora de Okinawa, elas tem um pouco mais… Elas têm uma perspectiva, de uma certa forma, um pouco privilegiada para poder identificar essas coisas. Então, acho que a importância está justamente aí. De ser capaz de observar e entender como que passou esse processo de substituição da língua. E até pra poder reverter esse processo no futuro. 

LUCAS: — Incrível. Acabei de dar uma pesquisada aqui e é o Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Incrível, um nome absurdamente grande. 

AKIRA: — É isso aí! É isso aí mesmo.

LUCAS: —  Nossa! (risada). Continuando, então, a gente viu aqui durante a pesquisa, e também foi mencionado que a ONU considera as línguas de Okinawa como risco de desaparecimento, né? A gente queria saber quais são os maiores desafios… Bom, a gente tem essa preservação, né? Então, quais são os desafios que existem pela frente?

AKIRA: — Os desafios são vários… Primeiro, as gerações… Primeiro que não existe mais falante nativo monolíngue de okinawano, não existe mais, todo mundo já faleceu. Os falantes que ainda existem, são… Pode-se considerar nativos e que falam Japonês como segunda língua já são quase centenários. Eles já são falantes bilíngues. Já estão nos seus noventa, quase cem anos de idade. Aí, vem a galera que é meio que falante, meio que… Mas que é um falante meio enferrujado. Isso quem fala é um pesquisador inglês chama Mark Anderson. Ele escreveu vários artigos sobre substituição linguísticas nas Ilhas de Ryukyu. Então ele classifica essas pessoas de quem eu falei até agora de full speakers, essas pessoas quase centenárias. Aí, depois entra uma galera que é falante enferrujado, que eles nunca chegaram aprender na escola okinawano. Então, como eles sempre falaram okinawano em casa, eles só aprenderam o registro informal da língua. Okinawano tem um registro formal e informal bem definido. 

AKIRA: Então, assim, para aprender o registro formal, precisaria ter uma educação formal na escola, como acontece com a língua japonesa, né? Os japoneses hoje adquirem o registro formal da língua na escola, mas como o okinawano, nessa época do século 20, estava perdendo espaço no dia a dia das pessoas, eles nunca o aprenderam. E essas pessoas também sofreram muito estigma, então fazem de tudo para falar em japonês com os filhos. Primeiro, há essa desconexão entre as gerações mais antigas e as gerações mais novas. As mais antigas realmente não usam o okinawano para falar com as crianças; elas mudam o código. Por exemplo, quando há um grupo de idosos conversando entre si, eles podem até usar o okinawano entre eles, mas quando vão falar com alguém mais novo, mudam para o japonês. É inconsciente, é automático. Assim, as gerações mais jovens não têm ambiente para aprender as línguas locais com os falantes mais velhos. Esse é um desafio. Outro desafio é o fato de que não existe nenhuma política sólida de introduzir a língua de Okinawa no sistema educacional, então acaba sendo algo meio que ad hoc. Por exemplo, uma determinada escola acha importante trazer isso para os alunos, então essa escola específica faz alguma coisa, entendeu? Mas a outra, por exemplo, já não faz. E, mesmo que a escola queira fazer algo, a escassez de materiais didáticos é muito grande; é uma escassez imensa de material didático. Não há uma diretriz unificada para ensinar a língua, o que também é um problema. Cada um ensina do seu modo. Ou, então, as pessoas que sabem falar ensinam a língua da região delas, e como eu disse, né, tem muita diversidade linguística aqui também. Então, às vezes, a pessoa ensina a variante dela, mas não conhece as outras variantes, o que causa essa desconexão. Aqui, nessa região, fala-se de um jeito, mas naquela outra região falam de outro jeito, né? Como as pessoas não conhecem, às vezes dizem: “Não, isso está errado, nunca ouvi falar desse jeito, isso é errado.” Isso ocorre muito. E também não tem uma escrita, uma ortografia unificada; não existe. Então, as pessoas usam a escrita japonesa de maneira ad hoc, da maneira que acham que é. Muitos aspectos de pronúncia não são passados adiante porque a escrita japonesa não reflete o inventário fonético das línguas locais. Por exemplo, em Miyako, que é outra ilha, há desafios muito grandes em relação a isso, porque a pronúncia é muito diferente; tem sons na língua de Miyako que não existem em japonês. Em japonês, por exemplo, não tem o som de “v”, como em “vovô”, mas em Miyako tem. Alguns sons vocálicos, por exemplo, como uma vogal central entre o “i” e o “u” – não sei até que ponto o pessoal sabe de fonética, mas quando a gente vê o diagrama das vogais, vemos as vogais fechadas, né, como o “i” mais frontal e o “u” mais posterior. Então, na língua de Miyako, tem uma vogal central que não existe em japonês, e isso também é um desafio muito grande. Como é que se ensina isso? Então, isso é só para citar alguns. Outra coisa: as pessoas aqui conseguem viver bem sem usar o okinawano para nada, então não existe essa urgência de aprender as línguas locais. Então assim, só para citar algumas.

MARIANA: Muito interessante. Ainda falando sobre esse silenciamento linguístico que aconteceu com Okinawa, a gente teve, na temporada anterior, um episódio sobre o silenciamento que ocorreu com o guarani, que é uma língua indígena, e em 2008 a ONU reconheceu os okinawanos como povos originários, né? E aí eu queria saber se existe alguma relação ou algum tipo de comparação entre o silenciamento do okinawano a partir do processo de colonização de Okinawa que se assemelha com o silenciamento que ocorreu no Brasil com os indígenas.

AKIRA: Ah sim. Eu acho que, como eu disse antes, só tive essa sensibilidade de aprender sobre os indígenas brasileiros porque olhar para Okinawa me fez entender a lógica desse processo, e a gente consegue traçar inúmeros paralelos em relação a isso. Então, assim, quando a gente vê, por exemplo, as consequências de se perder a identidade, de perder a língua, como os problemas que muitos povos indígenas enfrentam por praticamente serem obrigados a se adequar, a achar um lugar para si dentro da sociedade brasileira, isso é algo que os okinawanos tentaram fazer durante o século 20 inteiro: tentar achar algum lugar dentro da sociedade japonesa. Assim, a gente vê fenômenos semelhantes, por exemplo, quando acontece um êxodo rural no Brasil, como em regiões pobres, em que as pessoas precisam ir para São Paulo, para o Rio, para a cidade grande. Aqui também é comum: muitos okinawanos acabam saindo de Okinawa para ir para a cidade grande, para Osaka. Na verdade, em Osaka tem uma comunidade okinawana bem grande lá, e é muito comum o pessoal sair daqui e ir para Osaka, onde abrem uma loja de comida okinawana, etc. Então, assim, praticamente os okinawanos foram forçados a fazer uma diáspora, e isso também está ligado à própria razão pela qual saíram de Okinawa para outros lugares do mundo. Assim, eu acho que um bom exemplo de como uma pessoa descendente de Okinawa pode ser um bom estudo de caso para entender como se dá o processo colonizatório. Eu acho que dá para traçar muitos paralelos, essa comparação é válida.

LUCAS: Interessante. Sobre essa diáspora que foi realizada, nós vimos aqui no livro A Saga da Colônia Japonesa em Campo Grande que a população de Okinawa foi proibida pelo governo japonês de migrar para outros países e, quando foi autorizada, teve que cumprir algumas regras que consistiam nesse apagamento de cultura, tanto de maneira linguística quanto alterando a forma como lidavam com crianças, comemorações, ritos e outros temas. Você poderia falar um pouco mais sobre isso, por favor?

AKIRA: — Os okinawanos foram realmente obrigados a abrir mão de vários aspectos culturais, por exemplo, antigamente as mulheres de okinawa elas faziam tatuagens nas mãos, chama hajichi isso aí, era um costume do Riukiu, as mulheres tatuavam… como é que fala… algumas formas geométricas nos dedos, nas mãos, pra… e tinha vários significados, às vezes como se fosse, a vezes era assim, como se fosse uma espécie de rito de passagem assim. Tem uma amiga minha que ela é especialista nesse negócio de hajichi, ela Hiromi Toma. Ela estudou isso como ninguém. Só que a sociedade japonesa via essas… a tatuagem como um todo, como se fosse um tabu. Então, assim, primeiro as mulheres que eram casadas e tinham esse hajichi, o governo japonês tinha… como é que fala… eram pessoas que eles não queriam que migrassem. Isso foi um costume que os okinawas tiveram que abrir mão, assim. Eu acho que a minha tia falava que a avó dela tinha essas tatuagens. A minha tia. Ou seja, a minha bisavó, ou seja, quatro gerações pra trás, a minha avó já não tinha mais… não fez isso mais. A minha avó nasceu na década de 20, no início da década de 20, A minha avó já não tinha mais isso daí. E outra, eu sei que… eu lembro de ter lido, acho que foi no livro comemorativo dos noventa anos da imigração okinawana no Brasil, é um livro feito pela associação Okinawa Kenjin do Brasil, em São Paulo lá. Eu lembro de ter visto nesse livro que numa época o governo brasileiro não queria receber okinawanos, também por um motivo… que eles falavam uma língua que não era compreensível. E também não aceitava gente solteira , tipo homens solteiros, porque eles iam, trabalhavam na coisa e iam embora. Então na década de 30 já tinha um monte de regra pra poder imigrar. A pessoa tinha que falar japonês, tinha que ser casado. Isso tá diretamente atrelado a minha família porque meus avós imigraram pro Brasil em 1934 né, quando essas regras já tavam vigentes. E meu pai falava que meu avô, ele tinha uma namorada em Okinawa né, só que ela não quis… a família dela não quis imigrar pro Brasil, ela era contra né. só que a minha família, meu avô e os irmãos e todo mundo, principalmente por causa da minha bisavó queria que  todo mundo imigrasse pro Brasil porque foi uma época que o Japão… que eles viram guerra nessa época. A segunda guerra não tinha acontecido ainda, mas tinha acontecido a guerra da Manchúria né, nessa época. E a minha bisavó teve um filho que faleceu nessa guerra, um irmão do meu avô. E a minha bisavó queria que… Segundo meu tio, a minha bisavó não queria mais perder filho pra guerra, então a minha família toda tava se preparando pra imigrar pro Brasil, de qualquer jeito, só que a moça que meu avô tava namorando na época não queria ir. meu avô tinha vinte, vinte dois anos nessa época. Então eles tiveram que separar e meu avô teve que casar com a minha avó. Então ele separou, casou com a minha avó e aí sim ele foi permitido imigrar. Se não, ele não ia conseguir. É interessante porque aí o meu tio, na verdade, ele era filho da outra namorada, ele nasceu aqui em Okinawa né, um tio meu, e os outros filhos do meu avô tudo nasceram no Brasil né. Depois esse meu tio foi, depois da guerra, depois que ele completou dezoito anos, ele resolveu ir pro Brasil. Mas…. mas foi mais ou menos isso né.

LUCAS: — É  muito legal esses relatos né, até pra manter viva não só a parte histórica, mas o jeito como é abordado isso, vindo de uma pessoa que, querendo ou não, passou direta ou indiretamente por isso.

AKIRA: — É.

LUCAS: — Então, nós encerramos os episódios sempre com a mesma pergunta, independente da temporada,e é ela que a gente vai fazer agora. Akira, quanto da sua identidade como pessoa, como sujeito no mundo,  tem relação com as línguas que voc~e fala e usa? Você consegue se ver sem alguma delas?

AKIRA: — Ixi, não consigo não. Porque eu acho que a… Eu sou justamente isso né, essa mistura de ser parte de Okinawa, mas eu também, pelo lado da minha mãe, minha mãe é Goiânia, e os pais da minha mãe também são de Goiás né. E eu acho que eu também tenho muito desse lado. Eu acho que o que eu sou hoje é uma mistura disso tudo. è a parte de Okinawa, que eu procuro manter vivo, principalmente estudando as línguas dos meus antepassados por parte do meu pai né, mas na verdade esse é um processo que ainda tá em andamento porque eu aprendi falar a língua da capital que é Shuri Naha né, essa eu consegui adquirir uma certa fluência né, mas meu avô não era dessa região, meu avô era do norte de Okinawa. E é algo que eu ainda quero cultivar, eu quero aprender a língua  realmente que meu avô cresceu falando. Só que, ao mesmo tempo, eu acho que é muito  importante não esquecer as origens brasileiras. pelo lado da minha mãe é o que eu sou. Então eu tento unir as duas coisas, tento, da mesma forma que eu tento buscar tentar manter viva a  parte okinawana eu também tento manter vivo aquilo que me faz brasileiro né. então nesse aspecto assim, eu gosto muito de música né , então assim, eu também dedico muito tempo aprendendo, porque eu toco violão, eu gosto de tocar violão, então eu gosto de tocar choro, eu gosto de tocar samba e aprender o contexto histórico que esses ritmos trazem, pra também entender a formação da sociedade brasileira através da música também. Então assim, acho que se não fosse isso tudo, eu acho que não tinha Akira hoje em dia. Inclusive eu tenho vontade até de aprender alguma língua indígena, tipo engatu ou coisa do tipo sabe? Ou talvez até guarani mesmo. (risos)

MARIANA: — Bom Akira, a gente gostaria de agradecer a sua participação aqui o LínguasCast, foi muito construtiva essa conversa, muito bom saber sobre a preservação de uma língua. 

LUCAS: — Queria também, além da Mari, agradecer e dizer que eu acho muito legal, muito interessante, ouvir histórias de pessoas que se interessam pelo fato estudado. É muito rico, muito gostoso de ouvir. E eu tenho certeza que quem for ouvir esse episódio vai achar incrível também. Muito obrigado, Akira!

MARIANA: — Sim. Muito obrigada mesmo. A gente entende até que foi um pouco difícil de fazer isso acontecer por conta do fuso de treze horas, é muita coisa! Então a gente agradece a sua disposição.

LUCAS: — É muita coisa! 

AKIRA: — Eu que agradeço! É sempre um prazer falar de Okinawa, pra mim.

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